A raiva é um sentimento negativo, afirma categoricamente a maioria dos especialistas no assunto. Outros, no entanto, para estimular a polêmica e jogar longe a unanimidade, garantem que o fato de “botar para fora” os maus sentimentos frequentemente evita a ocorrência de problemas cardíacos. Trata-se de uma discussão infindável. Por isso não tenho opinião formada. Lembro, no entanto, de um caso emblemático ocorrido lá pelos idos de 1968, aqui mesmo em Arroio do Meio, onde a inconformidade foi vital para mudar radicalmente a vida de uma família inteira.
O causo a seguir envolve um pequeno comerciante que mantinha uma bodega e uma Kombi para o transporte para festas, bailes, jogos de futebol e outros quetais. A vida corria pachorrenta, sem sobressaltos. O boteco abrigava mesas de snooker, venda de “martelinhos” de pinga e as viandas eram apreciadas pela vizinhança. A mulher e o filho ajudavam na lida diária.
Por um desígnio do destino, o bodegueiro foi convidado para concorrer a vereador. Relutou: “Não sou político, sou comerciante”, repetiu insistentemente. Apesar da pouca disposição em lutar pelo voto, o interlocutor responsável pelo convencimento não desistiu, ponderou, elogiou os dotes da pobre vítima que capitulou. .
A decisão transformou nosso personagem que ficou ainda mais sorridente. A falta de experiência política não o intimidou, mas agravou as dificuldades em conquistar votos. Nos comícios – muitos realizados à luz de liquinhos pendurados no teto de armazéns de algumas picadas – era modesto na hora de expor suas próprias qualidades, mas generoso para elogiar os correligionários que disputavam a preferência do eleitor.
A bodega amanheceu às escuras e quieta para sempre.
Indignação e revolta resultaram na fuga de mala e Kombi
Depois do pleito, à medida que se desenvolvia a apuração dos votos – que naquela época se prolongava por dias a fio – ficava evidente que o fracasso era questão de horas. Elaborados os mapas eleitorais, nosso amigo ostentava a penúltima colocação, longe de uma cadeira na Câmara de Vereadores. Uma grande comoção tomou conta dos integrantes do antigo MDB, partido em que meu falecido pai também concorrera.
No dia seguinte à totalização dos votos, a bodega amanheceu fechada e silenciosa. E permaneceu assim por todo o dia. Descobriu-se que o comerciante com forte sotaque alemão, revoltado com a “voz das urnas”, lotara a Kombi com todos os pertences e apetrechos, reunira a família e partira para Porto Alegre sem olhar para trás.
Em poucos anos, ele se transformou em proprietário de uma das maiores churrascarias da Capital. Além disso, viajava anualmente à Europa, tinha um sítio cinematográfico fora da cidade e rejuvenescera. A raiva, causada pelo “recado dos eleitores”, foi tamanha que provocou uma reviravolta poucas vezes vista na vida de uma pessoa em nossa tranquila Arroio do Meio.
O grande fracasso do pequeno comerciante até então conformado com a vida simples atrás do balcão operou um milagre. A raiva motivou uma mudança tão profunda que ninguém imaginava vê-lo com o passaporte repleto de carimbos obtidos nos quatro cantos do mundo.
Neste caso, a fúria humana salvou o futuro financeiro de um frustrado vereador. É bom lembrar que, naquela época, os representantes do povo sequer salário recebiam. Era amor à camiseta de verdade!
É por estas e outras que, às vezes, é salutar libertar os nossos demônios…