Estava organizando cadernos e papéis em minhas entulhadas gavetas quando me deparei com a carta de uma ex-colega de jornal, lá dos anos 80, tempos em que ainda se escreviam cartas, coisa anterior ao e-mail ou o digitar das redes sociais. Ela lembrava um momento depressivo que vivera, agradecia meu apoio e dizia achar graça dos exageros, da brutal carência e falta de amor próprio que a levara ao gesto extremo de tentar acabar com a própria vida. E o fez com requintes de estilo. Redigiu um texto de frases feitas, citações de grandes poetas e ainda gravou um último adeus – voz compungida – entremeada por soluços de pura e sincera mágoa contra o mundo cruel. Ó dor! Viver um momento assim é realmente devastador, especialmente no caso dela, casada com um pacífico e dedicado professor neozelandês de Biologia, que chegara ao Brasil para um trabalho específico, apaixonara-se e só retornara a seus país de origem, quando o amor dele por ela acabara. Disse adeus sem meias-palavras e com sotaque gaúcho. Simplesmente pegou as malas e partiu.
Ela chorou o que pôde. Ele ficou naquela do “te amo, mas não tanto…” até sumir por todo o sempre, como se nunca estivesse vivido pelas bandas do Sul. No vácuo criado, ela tentou recuperar-se com leitura, religião e negação, que é o maior mal, entre todos os casos de natureza amorosa. Quando se sentiu pior do que o mais vil dos seres humanos, um mero espécime rastejante, afogada pela torpeza dos sentimentos, perguntou-se diante do reflexo de mágoas: “és, afinal, mulher ou ratazana”? Optou pelo detestável roedor é claro. E correu à dispensa onde guardava produtos de limpeza. Procurou, e achou um pacote de veneno granulado para ratos. Abriu um espumante francês, Veuve Clicquot, que reservara para o jantar romântico que celebraria cinco anos de vida a dois. Uma primeira taça para lhe dar coragem e uma segunda para ajudar a digerir as quase dez pílulas que engoliu.
E assim, brindando a cada momento feliz da relação, começou a sentir o efeito das pílulas. Entre choro e gargalhadas, ficava cada vez mais bêbada. De repente uma dor lancinante lhe torceu os intestinos. Um calor, uma força estranha, como se algo se movesse apressado em seu ventre e tentasse escapar desesperadamente de seu corpo. E correu ao banheiro, onde “foi aos pés” como se dizia antigamente na casa de seus avós, de forma nunca antes vista. Uma brutal, avassaladora diarreia lhe prendia ao vaso. Chorava temendo morrer daquele maneira estúpida, humilhante. Borrada e acocorada em um canto do banheiro. Mas, após mais alguns longos e sofridos minutos, tudo passou. E sentia-se melhor. Muito melhor. Aliviada. Vazia.
Foi conferir o veneno. Deveria estar vencido, imaginou. E percebeu que tomara um forte remédio para prisão de ventre que seu ex-marido escondera ali, porque ela tinha mania de fazer dietas agressivas, com esse tipo de medicação. Voltou à razão e brindou a última taça da champagne francesa ao homem que a jogara ao fundo do poço e, de alguma maneira, a salvara do limbo em que vivia. Estava pronta, pós-catarse, ou melhor, pós-diarreia, para ser feliz. Amar, ou simplesmente curtir seu novo momento com mais independência e razão. “De alguma forma, ficou aquele último gesto de amor dele. Como uma prova de que tudo que se acaba pode ser reconstruído outra vez”. E que a vida dói. Mas vale a pena.