A primeira vez foi uma fisgadinha, como se lhe houvessem cutucado com algo pontudo. Depois percebeu que era cansaço do esforço repetitivo no computador. E precisaria sair à rua para tomar um ar, fazer aqueles chatos exercícios recomendados por seu fisioterapeuta e nem pensar em retomar o trabalho naquele dia. Ao persistir, viriam as dores, o formigamento nos braços e uma quase perda de movimentos. A seu lado uma revista exibia outros homens de meia-idade ou mais velhos ainda. Atléticos, sarados e dispostos a longas caminhadas ou exercícios intermináveis em academias. Viveriam 200 anos. Seriam profissionais atentos, mesmo dentro da faixa dos 80 anos. Lá estava o riso seco de Clint Eastwood – feliz, ao lado da esposa, uma senhora de 45 anos – anunciando seu 35º filme. Jurava que não pretendia parar. Feliz, radiante e com frases feitas magníficas: “Sempre estive aberto à mudança e em sintonia com o mundo. É preciso estar faminto com a vida,” anunciou ao jornalista canadense Harold Von Kursk. Maravilha! É a perfeição em conceito, mas improbabilidade no mundo real.
A fisgadinha retornou nervosa, desta vez no olho direito. Lá vai dinheiro em outra consulta no oftalmologista. Seguiu a leitura. Eastwood ele realmente admirava. Jogava golfe nas horas vagas, praticava piano, ouvia jazz e depois de ser o durão dos spaghetti western de Sérgio Leone libertou-se em uma carreira de êxitos. Filmes de grande sensibilidade como “Bird”. Mas nem todos podemos viver assim. Hollywood está lá, bem longe. E viu as múltiplas funções que deveria cumprir, algumas até o final da vida e que não tinham o mesmo glamour do cinema. Essa era a vida que escolhera. E precisava assumir a velhice sem culpas, ou uma visão pessimista, mergulhado no passado. A fisgada insistia. O colírio apenas lavava o globo ocular sem muito resultado. De repente se dava conta que misturava as coisas.
Retornou a mesma revista onde lera a entrevista do veterano ator norte-americano que se juntava a uma série de outros senhores de sucesso e muito bem conservados. Foi salvo pela citação de uma filósofa alemã, Hanna Arendt que insistia na diferença entre trabalho e obra. O primeiro representava o ganha-pão, a sobrevivência no cotidiano. Algo como os filmes mais comerciais da carreira de Eastwood. Caça-níqueis. Mas para a filósofa uma obra é aquilo que deixa um legado. É um projeto, uma construção que leve a algo mais sólido e presente. “Não necessariamente notável, mas que faça sentido para você”. E lembrou dos entalhes que seu pai fazia ao aposentar-se. Era um trabalho minucioso, que contava sempre uma história: famílias humildes, mulheres grávidas, gente celebrando. Nunca expôs nada. Mas o fazia sentir-se feliz com os elogios dos vizinhos e amigos.
Percebia que apenas a exaustão em troca de salário, do complemento à aposentadoria, eram poucos, não apenas pela baixa remuneração, mas pela falta de objetivos. Pagar as contas da casa, o alimento. Era isso apenas? Pensou então que deveria existir não simplesmente para os outros, mas para si. O que importava o que pensavam? Muito pouco. Mas cuidar da vida como um projeto nobre, uma alternativa mesmo singela de se criar algo, iniciar uma obra, mesmo que isso seja um curso de risoto, ou de alemão para surpreender os amigos e, quem sabe, galgar uma nova posição no mercado de trabalho, seriam movimentos não repetitivos importantes. Talvez por casualidade, a vizinha, dona Laura, cruzou em sua frente bem na hora dos exercícios físicos e elogiou o esforço. “Querendo chegar em forma no verão, hein?” provocou. Riu, sem graça e emendou: “quero algo melhor ainda na primavera, tenho pressa.” Ela seguiu, com aquele risinho malicioso tipo “tudo bem se eu for incluída no projeto.” E lá veio outra fisgadinha. Desta vez, não doeu o músculo atingido. Até agradável foi. Esse pessoal, não perde tempo.