Madrugada, horário de verão, abri as janelas para conferir a chuva, que embora as nuvens pesadas, caía levemente, sem muita convicção. Ao ligar o rádio, ouvi que nem muito longe dali, do outro lado da região Metropolitana de Porto Alegre, o mundo desabava em água. As imagens nos sites de notícias eram inacreditáveis. Inundação na BR 116. Um sufoco! Uma retroescavadeira quebrava a mureta divisória da pista para permitir o deságue. Voltei à janela e percebi que um dos pneus de meu carro estava totalmente esvaziado. Pela primeira vez na vida, não reclamei pelo trabalho que suja as mãos e cansa, já nas primeiras horas do dia. Tinha coisa muito pior rolando.
Ainda pela internet conferi o jornal e li a comovente história de Jéssica a única sobrevivente de um terrível acidente que vitimou outros cinco jovens, após a colisão do Audi em um muro no bairro Moinhos de Vento, na Capital. Ela ficou internada no Hospital de Pronto Socorro por 40 dias, à beira da morte. Abortou o bebê de quatro meses – um menino – ficou sabendo depois. Agora se recupera em casa. Diz que vai se comportar, deixar de ser a filha problema. Precisava passar por tudo isso? Tanta dor?
Eu não sei se é a maturidade, mas tenho avaliado com muita naturalidade, sem contar o espanto, diante destes casos. Viver no limite da razão, desejar por desejar não tem sentido. A natureza provoca estragos, como assisti. Um pneu pode rasgar em uma pedra, são fatalidades. Mas atirar a vida no lixo, isso não tem o menor sentido. Algumas horas depois, assisti a briga de um casal. Em pleno supermercado. Um reclamava do outro, não gritavam, nem faziam escândalo, mas no silêncio dos corredores, eu percebia que ela falava mal do cunhado. Ele respondia dizendo que a sogra era uma bruxa.
De repente, ela para e pergunta qual o sabão em pó que ele comprara da última vez? “Tu fez o rancho, deve saber”. Enquanto ele respondia, já se acalmavam. E saíram rumo ao caixa de mãos dadas. Brigar por causa de parente é bobagem. Por mais chatos e invasivos que possam ser. Se dá para negociar uma linha de equilíbrio, ótimo! Mas conflito não leva a nada.
Ao voltar para casa, abri a salada de frutas que comprara e, ao abrir a tampa, surpresa! Dezenas de formigas boiavam já afogadas, outras corriam para fora, certamente com as barriguinhas cheias. O que vocês fariam? Comeriam assim mesmo? Pois saibam que é algo muito arriscado. As formigas buscam alimento em tudo, desde fezes a animais mortos. Comem baratas e aranhas mortas! Horrível! Então, lá fui eu de volta ao super, com toda a tolerância do mundo trocar meu dietético lanche.
Por sorte, o gerente do supermercado nem reclamou, e viu que outros potes estavam na mesma situação. E lembrei que esses minúsculos bichinhos costumam contaminar pessoas, porque gostam de tudo que é porcaria, não apenas de açúcar ou folhas. Voltei para casa, com uma barrinha de cereal. Irritado, mas ao concluir esse texto, já está cheio de boa vontade e compreensão por este mundo tão cruel. Vale a pena, afinal, tem coisa pior. E a coisa pior a gente evita assim. Com tolerância.