Será que partir é sempre necessário? Contava os segundos, como quem administra uma poupança de milhões em ouro ou dinheiro. Em suas contabilidades, o que importava era o quanto a menor lhe restava. No dia em que nenhum centavo lhe restasse abriria a porta para um novo mundo. Uma vida renovada seria sua maior fortuna. Ar! Queria ar! Sem humores instáveis, dúvidas, ânsias e patrulhas. Decisões sem pé, nem cabeça uma vida que não valia nenhum centavo.
Sábados eram o inferno virado em compras, faxina em casa e uma sensação de que à noite desabaria defronte a tevê, sem muito o que escolher. Tudo isso seria um tanto aceitável, não fosse a pressão por dividir problemas e pouco prazer com o homem que antes lhe inspirara tanta satisfação e bom humor. Hoje, era um sujeito morno, que gerencia mal sua parte na relação, uma contabilidade de incertezas, de juros altos, de investimentos decrescentes ou pior, estabilizados em uma faixa de grande risco.
“Hoje eu decido: vou dar um basta a esse vai-não-vai”. Os leitores já perceberam que a coisa gira em torno de uma relação desgastada. Um casamento acomodado ou, para ficarmos no setor econômico, com muito pouco capital de giro para novos investimentos. Assim, ao sair do trabalho, decidiu ir à estética. Coisa rara. Precisava estar em forma para acertar suas contas com o marido. Mudou o corte de cabelo, caprichou nas unhas, fez massagem. Confidenciou ao cabelereiro, a podóloga e até a moça da recepção que, no sábado, iniciaria uma nova vida.
“Chega de amassar o pão que alimenta outras fantasias”, afirmou, adorando a metáfora. Saiu sentindo-se nova, embora reclamasse da barriga que lhe pareceu inchada. Até em função disso, preparou uma janta leve, arrumou a mesa com sua melhor louça. Seria um encontro de contas, ou melhor, um “tchau” civilizado. Ele chegou como fazia todos os dias, com vontade de uma ducha urgente e qualquer sanduíche para devorar. “Um filme”, sugeriu, justo ele que sempre dormia na melhor parte.
Ao ver os copos de cristal reservados às visitas, perguntou se iriam celebrar alguma data que, mais uma vez, esquecera. Ela deu a mais genérica das respostas: “preciso te comunicar uma decisão importante”, disse. Saborearam como a muito não faziam, o prato que ela servira. Filé de peixe, com molho de laranja. Um manjar, se comparado aos habituais sanduíches. Nada de cerveja, ela oferecia espumante. Brut, para ele. Moscatel para ela. Era tudo novo, no antigo enredo.
Ela estava relaxada, distraída em seu objetivo. Assim foi ele, sempre tão quieto e ausente, que quebrou o silêncio: “gostei desse teu cabelo. Combinou com tuas bochechas coradas. É o efeito do espumante”, disse, ao lembrar que ela muito pouco consumia bebidas alcóolicas. A mão grande e pesada acarinhou a maciez daquele rosto, tão familiar, mas que com os anos amarelava feito uma antiga foto na parede de casa. A carícia os levou ao beijo, um raro beijo.
Bem que ela tentou argumentar, mas todos os relatórios, todas as injúrias eram prisioneiras do momento que saciava uma fome mais urgente. Seria apenas carência? Ou carregava respostas às perguntas que a rotina escondera? Deixou de lado, pelo menos naquele instante, a contabilidade de uma despedida para a qual ainda não estava pronta. Quando ele perguntou sobre o comunicado, “tão importante”, ela respondeu: “Ou vivemos mais momentos iguais a esse, ou te mando embora!” O trato foi selado, outra vez, com um beijo.