Quando chega a Páscoa e o Natal é inevitável lembrar da infância e adolescência. Nunca gostei de peixe, o que é lamentável porque se trata de uma questão de saúde. Diante da verdadeira febre do sushi, me sinto uma ovelha desgarrada. Amigos fazem convites, se prontificam a pagar a conta, a buscar e levar em casa. Nada me sensibiliza. O cheiro desses “animais aquáticos vertebrados” me causa náuseas.
Já contei que a rotina lá de casa envolve o preparo de três churrascos por semana. Na quarta-feira, que é o dia sagrado dos filhos e amigos, enquanto assistimos ao futebol na tevê e tomando umas geladas. Também no sábado a churrasqueira esquenta e, é claro, no dia internacional do churrasco – domingo – quando a tradição é mantida com horário estendido.
Este fanatismo pelo assado obriga a que, na Sexta-Feira Santa, faça uma fusão das tradições. Nesta data costumo comprar salmão e assar na grelha. Dona Cármen e os filhos capricham no tempero, feito na véspera, para disfarçar o – eca! – sabor inconfundível do peixe.
Este hábito remete a uma tradição que tínhamos na época do Segundo Grau no Colégio São Miguel, de saudosa memória para tantos contemporâneos. Com alguns amigos como Clayton e Jairo Schuch, Tedila Kunz, Betão Theves, Lynho Schnorr, entre outros, costumávamos comprar todos os apetrechos para assar uma carne no espeto.
Alguns tinham torcicolo, de tanto olhar para o
relógio da torre da igreja, ávidos pela hora fatal
Os preparativos começavam por volta das 21h da Sexta-feira Santa, e envolviam deixar a carne espetada e temperada, além de montar a pilha de carvão, acondicionar a salada de batata feita por uma das mães na geladeira e ficar de olho no relógio.
A reunião ocorria no local sagrado da gurizada na época: a frente da Igreja Matriz, diante da belíssima Praça Flores da Cunha. A “assembleia dos bagunceiros” era embalada pela trilha sonora emanada do Ford Galaxie – o popular Galochão – do Betão, equipado com toca-fitas, além de poderosos alto-falantes e um potente equalizador Tojo, com “controles deslizantes” e luzes piscantes.
Por volta das 23h a churrasqueira era acesa, para deleite da “tchurma”. O chiado da gordura pingando sobre o fogo aumentava o apetite e a excitação. Alguns tinham torcicolo, de tanto olhar para o relógio da torre da igreja, ávidos pela hora fatal.
Quando o carrilhão finalmente anunciava a meia-noite, gritávamos como dementes. Ao mesmo tempo, o primeiro espeto era brandido como troféu, afinal, já estávamos no Sábado de Aleluia, e o jejum imposto pelas tradições religiosas deste bando de pecadores chegara ao fim.
Com frequência conto esta história nos churrascos que faço com os amigos de meus filhos. Eles duvidam da veracidade de uma brincadeira tão inocente, comparada ao que vemos por aí. Também não havia bebidas alcoólicas porque degustávamos pilhas de garrafas de vidro de guaraná e Pepsi-Cola.
Se eram bons tempos? Sim, para nós, sem dúvida. O tempo passa, as tradições mudam e muita gente já não curte jejuar no século 21. Certo ou errado, depende das convicções de cada um. Indiferente às dúvidas hoje, a partir das 23h, estarei ao pé da churrasqueira. Vou esperar ansioso pelas “12 badaladas notúrnicas” como diria Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, personagem do inesquecível Chico Anysio.

