“Imaginem o horror de um mundo em que tribunais fossem a única maneira de se conseguir justiça.”
A observação acima dá pano pra muita manga. Ela é de autoria de Millôr Fernandes, escritor falecido há pouco, em 2012.
Conseguir justiça é, de fato, um desafio que atravessa os séculos. Não fosse assim, não faria tanto sucesso a remontagem de uma peça de teatro escrita há mais de dois mil anos. Trata-se de “Antígona”, de Sófocles, que passou pelo palco de Porto Alegre na última terça-feira. Casa lotada, ingressos esgotados com grande antecedência, a mostrar como é delicada a balança em que a justiça deve ser pesada. E como o interesse pelo assunto se mantém aceso.
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A história mostrada em “Antígona” é a seguinte:
Antígona é enteada do rei Creonte, que governa Tebas. Ela não se conforma com a ordem expedida e decide dar sepultura a seu irmão Polinice. Acontece que Creonte considera Polinice um traidor da pátria e decretou que seu cadáver fosse deixado insepulto. O cadáver de Polinice deve servir de pasto às aves de rapina e aos animais selvagens. E deve servir de exemplo a todos aqueles que ousam contestar o poder do rei.
Na Grécia antiga, nenhuma punição é maior do que esta, de não receber sepultura digna. Antígona desobedece ao rei e trata de enterrar o irmão, mesmo sabendo que seu castigo será a morte. Antígona acha que a lealdade ao irmão é mais importante do que a própria vida. Se ela trair o irmão, não saberá mais como viver. Antígona prefere desrespeitar a lei do governante atual, do que desrespeitar a antiga lei da sua comunidade – esta que manda enterrar os mortos.
Antígona está disposta a pagar com a vida pela desobediência. O que ela não consegue fazer é desobedecer à própria consciência.
Aceita morrer.
Mas a história não termina aí. O rei Creonte não conhecerá mais paz, depois consumar a sua justiça.
De modo que a discussão também não se extingue.
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A antiga peça de Sófocles volta a cena para nos fazer uma porção de perguntas.
Pergunta qual é a essência da lei. Se a lei está a serviço da melhor solução – aquela que mais respeita a dignidade humana – ou se pode ser flexionada por quem detém o poder?
Pergunta quem são os guardiões da lei. São os tribunais ou são todos os cidadãos? E assim volta a observação de Millôr Fernandes, da nossa introdução.
Enfim, pano pra toda a manga…