Dona Rosa Martins é viúva de Otacílio Martins, conhecido por “seu Kimba”, pessoa muito prestativa e que trabalhou por quase 30 anos na prefeitura de Arroio do Meio. Rosa nasceu no interior de Santa Cruz do Sul, entre os anos 1920-1930.Foi registrada pelo pai em 15 de março de 1931 quando já tinha 6 ou 7 anos. Todos os documentos que guardava, tanto os seus quanto os dos pais, foram extraviados ou levados pelas águas nas tantas enchentes que enfrentou ao longo dos anos vivendo no bairro Navegantes.
A escola ficava muito distante e não pôde frequentá-la e, sendo a filha mais velha de oito irmãos, acompanhou os pais na roça desde criança. Nada mudou quando o pai decidiu tentar uma vida melhor na Marinheira ou em São Luiz, não lembra exatamente, só recorda que ficava bem no morro. Em pouco tempo, nova mudança. Desta vez, em Picada Olinda, hoje Nova Bréscia. Ali, quase todos os moradores eram italianos, bons vizinhos.
Ainda menina, conheceu Otacílio Martins que, como ela, trabalhava na roça. Pouco tempo depois, em 1º de dezembro de 1948 casaram-se. Foi em Picada Olinda que nasceram os primeiros filhos do casal. “Eram tempos difíceis, nunca se tinha dinheiro e tudo o que era preciso comprar, custava muito”. Na tentativa de conseguir mais dinheiro para o sustento da família, Kimba decidiu ir para Arroio do Meio e em junho de 1952 conseguiu trabalho no Frigorífico Ardomé. Rosa e as crianças permanecem em Picada Olinda e o marido retornava uma vez ao mês. Na cidade, ele passou a morar com a mãe, que era viúva. “Era difícil o transporte, custava caro e ninguém tinha automóvel. Era uma riqueza ter um. Quando se via um passando, se ficava bobo”, diz ela.
Depois de cinco ou seis anos de muito trabalho e economias, Kimba conseguiu comprar uma pequena casa de madeira, que ainda hoje existe na rua Gustavo Wienandts, e trouxe a família para viver com ele. Existiam poucas casas e quase nenhuma para alugar e, na varanda da casa, um irmão de Kimba e sua esposa passaram a residir. Logo a casa se tornou pequena para tanta gente. As crianças brincando no pátio faziam barulho e Rosa achou melhor voltar para Picada Olinda. O marido comprou outras terras, desta vez uma área maior, num local conhecido por Coxo. Ia para a roça onde, sozinha, trabalhava por dois, enquanto as crianças ficavam em casa, cuidando umas das outras.
Família dividida, Rosa grávida do sexto filho e vivendo num local distante de tudo. Não demorou e Kimba decidiu trocar estas terras “de mano” por uma casa de madeira, localizada defronte à igreja, no bairro Navegantes. “Era tudo lindo, rio limpo para as crianças brincarem, muito mato e sombra e uma igreja defronte à porta, o que mais podia querer?”, conta.
A esta altura o casal já tinha seis filhos: Ilse, Leoclides, Santina, Avenilda, Tercila e Juarez.
Quanto ao bairro, ao longo da rua Campo Sales, existiam três ou quatro casas e já existia a Casa do Peixe, que além de restaurante também era bodega.
O Ardomé faliu e o desespero se abateu sobre a família. Rosa sempre foi uma pessoa de muita fé. Orava muito e agradecia. Quase nunca pedia, apenas agradecia. Suas preces foram ouvidas e em 11 de fevereiro de 1963 o marido conseguiu um trabalho na prefeitura, onde era um faz tudo. Era encarregado de cuidar da parte de eletrificação do município. Diariamente, ao amanhecer e ao anoitecer ia até os postes instalados em pontos extremos da cidade, para ligar e desligar a chave de energia elétrica. O trajeto era percorrido antes e depois do seu horário de expediente, a pé ou de bicicleta, e não ganhava nada a mais por isso.
Por décadas, Kimba fez outro serviço social: controlava as varas de medição das cotas de enchente do rio Taquari. Tais números eram repassados para a rádio que alertava a população.
Na cidade o casal teve mais dois filhos: Hamilton e Sonderlei. A vida se tornou ainda mais difícil porque não tinham roça para plantar. Rosa fez uma pequena roça junto ao pátio da igreja, mas não era suficiente. Buscou trabalho em casas de família assim, Leontina Schmidt, Julieta Krey, Camila Fritz e Clari Fleck foram pessoas importantes em sua vida. Na casa destas, cuidava da limpeza e das roupas que eram lavadas com sabão caseiro no rio Taquari. Para ganhar um dinheirinho a mais, junto com uma comadre, ia ao rio e, com dois pedaços de taquara recolhia a banha rejeitada que descia pelos canos de esgoto. Em determinada época chegaram a armazenar 18 latas com 18 quilos de banha, produto posteriormente vendido para um comerciante de Travesseiro que fazia sabão.
Rosa aceitou um convite e passou a cuidar da igreja da comunidade. Esfregava o piso, que era bruto, tocava o sino, enfeitava o altar recolhendo flores nos pátios das casas, nunca foi remunerada por tal serviço, fazia por amor. Visitava as famílias pedindo gêneros alimentícios e brindes para a festa dos Navegantes. Não havia salão, as festas ocorriam embaixo de barracas e lonas improvisadas.
Mesmo com tanto trabalho, estava sempre feliz e, como ela própria diz: “Tinha saúde, conseguia trabalhar, tinha bons filhos, um bom marido e uma casa para morar, o que querer mais?”
Em dado momento foi instalada a Amam, no pátio defronte à sua casa. A emoção veio à tona em forma de lágrimas diversas vezes ao lembrar do período em que ali trabalhou e da gratidão ao casal Dirce e Jorge Vasconcellos, responsável pela entidade na época e que a convidaram para trabalhar. Nesta casa de acolhimento foi “mãe” de algumas centenas de crianças. Contratada para cuidar da higiene pessoal das crianças, dava-lhes banho, cuidava da roupa, catava piolho quando era preciso e as conduzia à escola. Fazia bem mais do que lhe era atribuído.
O marido alfabetizou-se frequentando as aulas ministradas por alunas voluntárias do Colégio São Miguel, no anexo que funcionava junto à Amam. Recorda que Rejane Perotti Kerbes foi a professora que o alfabetizou e, inclusive, lhe providenciou óculos. Rosa, no entanto, seguiu analfabeta até o momento em que a diretora sugeriu colocar um cartaz atrás da porta com os numerais e então as crianças eram encarregadas de lhe mostrar os números que correspondiam à quantidade de alimentos e xícaras. Com isso, aprendeu a contar e sabe o valor do dinheiro, mas não sabe ler e escrever.
Ela lembra que era uma época de muita pobreza, a maioria das crianças recebia ali o único alimento do dia. Qual não foi sua surpresa quando Jorge Vasconcellos lhe chama ao pátio a fim de apresentar a nova empregada que havia contratado. Rosa ficou um pouco assustada ao ver a máquina de lavar roupas. Até então, toda a roupa das crianças era lavada à mão.
Mesmo residindo em frente à Amam, nenhum dos oito filhos passou pela entidade. Ficavam em casa, uns cuidando dos outros.
Sua jornada começava cedo. Por residir defronte à entidade, alguns pais saíam muito cedo de casa para trabalhar e batiam na janela do seu quarto a fim de lhe entregar seus filhos para que ela os conduzisse à Amam. Rosa os colocava em sua cama para dormir, então ela e o marido iam para a cozinha e, enquanto tomavam chimarrão, adiantavam o serviço do dia. Mas, nada a havia tocado tão fundo quanto o que ainda estava por vir. Uma família vinda de uma região distante, na qual a mãe faleceu poucos meses após o parto, instalou-se em Arroio do Meio indo morar num casebre junto à ponte que fica próxima a vila Tiradentes. As quatro ou cinco crianças, quando não estavam na creche ou na Amam, brincavam embaixo ou sobre a ponte. A relação de Rosa com uma destas crianças, Paula, de três anos que passou a lhe chamar de mãe, foi algo mágico. O pai pediu que Rosa a cuidasse pois não conseguia dar conta dos filhos, e desde então a menina passou a morar em sua casa. Paula era tão agarrada a ela que até no trabalho se enroscava em sua perna, precisava tê-la sempre por perto. Foi sugerido que pedisse a guarda da menina e o pai desta a negou e levou a menina para a sua própria casa após tê-la deixado por cerca de cinco anos sob os cuidados de Rosa Martins. Outro irmãozinho, menor ainda, também vivia em situação parecida, amado incondicionalmente por uma “tia” que não teve filhos biológicos.
Perder a pequena foi um golpe duro demais. Não entendia o porquê, chorava muito e a família se compadecia ao ver seu sofrimento. Era preciso sair do trabalho às escondidas para que a menina não lhe visse. A ouvia chorar muito ao ser impedida de ir à sua casa e chorava junto. Tal situação ocorreu próximo ao Natal e a menina, largada à própria sorte, foi atropelada quando brincando correu para pegar a bola sobre a ponte, onde de certa forma residia, e sobre a qual faleceu.
Pouco tempo após o ocorrido, Rosa aposentou-se e parou de trabalhar na Amam, mas por muito tempo ainda seguiu auxiliando na igreja. Reconhece que nunca conseguiu cortar o cordão umbilical com os filhos, o mesmo se seguiu com os netos que a vida foi lhe apresentando. Dois meses após a aposentadoria foi convidada a retornar. Sua falta foi sentida em todos os setores, sua dedicação era total, o trato com as crianças, a delicadeza, a voz mansa, o respeito e o amor que cada um lhe dedicava era algo inexplicável. Os filhos e principalmente o esposo, pediram que não voltasse. Poderia sofrer de novo, visto que o coração estava fraco e passou a fazer uso de remédios contínuos.
Hoje, continua sendo o porto seguro da família. Aos 88 anos ou talvez 92, Rosa cuida da filha Avenilda que teve problemas de saúde ainda quando criança e de Santina, que sofreu danos mentais irreversíveis após a segunda gestação. Sua guarda lhe foi conferida por decisão judicial.
Seu coração é fraco, mas segue à risca todas as prescrições médicas. “A Dra. Daniela da ESF Navegantes é uma segunda mãe para mim, aquelas gurias, as enfermeiras, são uns anjos para mim e para Avenilda. Até colocam os remédios numa caixinha com tudo separado para a gente saber qual tomar e na hora certa”.