Apesar de o distanciamento entre as pessoas ser um procedimento utilizado desde a antiguidade para evitar o contágio de doenças, é na atual pandemia de coronavírus que, pela primeira vez, ocorre uma quarentena de proporção global. Muito já se estudou, leu ou ouviu sobre pandemias. A que se vive agora, também marcará a história e será estudada daqui para a frente. Para abordar as pandemias ao longo da história, o AT conversou com o professor da Univates e da Rede Municipal de Arroio do Meio e doutorando em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD/Univates), Sérgio Nunes Lopes. Confira:
AT– Passamos por muitas pandemias ao longo da história. Poderia explicar como se considera um surto de determinada doença como uma pandemia?
Sergio Nunes Lopes– Os profissionais da saúde, especialmente epidemiologistas, têm mais precisão na resposta a questionamentos específicos como este. São eles que estudam a propagação e transmissão das patologias e seus agentes causadores. Há uma série de variáveis específicas e técnicas nas quais aqueles profissionais se baseiam para empregar o conceito de pandemia a uma conjuntura de transmissão e contágio específica, como a que estamos vivenciando. Da perspectiva historiográfica, tomamos emprestado esses conceitos utilizando apenas como forma de representação discursiva do que estamos estudando. Nos textos historiográficos o conceito de pandemia costuma aparecer próximo a outros como endemia e epidemia. Via de regra, em ordem crescente de abrangência, temos a endemia entendida como uma doença existente em determinado lugar atingindo maior ou menor número de indivíduos. A epidemia é caracterizada pelo contágio rápido de um grande número de pessoas em um mesmo local. Já a pandemia tem a ver com a difusão ampla de uma doença. O prefixo pan da palavra pandemia tem o sentido de totalidade, inteireza. Portanto, o termo está sendo empregado na atual conjuntura pela difusão mundial do vírus que causa a doença.
AT– Há quanto tempo, mais ou menos, o ser humano as enfrenta? Qual seriam as mais antigas conhecidas?
Sergio Nunes Lopes– Essas são questões que não podem ser respondidas sem uma série de ponderações. Seria simplório traçar uma linha do tempo ou compor uma cronologia das pandemias sem olhar com cuidado para a configuração sociocultural, sanitária, climática e econômica de cada região atingida pelo que possa vir a ser classificado como uma pandemia. Isso sem contar as especificidades do agente causador. É possível afirmar, entretanto, que há muito tempo a humanidade convive com doenças de contágio rápido e letalidade considerável. Os registros escritos antigos mais conhecidos no ocidente estão contidos nos livros do Antigo Testamento da Bíblia. No livro do Êxodo, por exemplo, há narrativas de pragas, algumas invisíveis, que atingiam a população daquele tempo. O uso político daquelas doenças vinha para a cena como sendo a manifestação da fúria do deus hebraico contra os faraós egípcios que aprisionaram os hebreus. O Deuteronômio e o Levítico são outros dos livros bíblicos a mencionarem doenças ou ameaças das mesmas, enaltecendo a amplitude e os efeitos de cada uma delas. Tudo isso atesta que as doenças contagiosas de alto impacto são, desde muito, conhecidas pela humanidade.
Em relação às epidemias mais conhecidas, sobre as quais se tem literatura profusa, é possível mencionar a peste negra, no apagar das luzes da Idade Média europeia e a gripe espanhola, do final da segunda década do século XX. A peste negra também conhecida como peste bubônica é causada por uma bactéria conhecida como Yersinia pestis. O pico de contágio no continente europeu iniciou em 1347 e estendeu-se por muito tempo gerando, conforme algumas estimativas, a morte de um terço da população europeia. Esse episódio compôs um contexto conturbado na Europa, que se reconfigurava geopoliticamente com a crise do feudalismo e o advento do capitalismo mercantil sob a égide da burguesia.
Já a gripe espanhola é causada por um vírus do tipo influenza. Conforme a historiadora Adriana da Costa Goulart, mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), desde maio de 1918 a Europa e a África eram assoladas por uma doença epidêmica de diagnóstico incerto. A Europa era o epicentro da primeira guerra mundial. Alguns países chegaram a suspender o recrutamento de soldados para a guerra dada a proeminência da doença.
AT– Aqui no Brasil, quais as primeiras que enfrentamos?
Sergio Nunes Lopes– Na América como um todo as epidemias, algumas delas conscientemente projetadas, vitimaram as populações locais facilitando sobremaneira a dominação colonial a partir do final dos anos 1400. No Brasil não foi diferente. Sobre as mais impactantes antes mencionadas, conforme os registros do Arquivo Nacional, vasculhados pela historiadora Adriana da Costa Goulart, o vírus da gripe espanhola teria chegado ao Brasil em outubro de 1918 a bordo de um paquete (navio luxuoso) inglês denominado Demerara. O itinerário do Demerara foi Liverpool/Portugal/Recife/Salvador/Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul, conforme levantamento histórico feito pelo jornalista Marcelo Kervalt e publicado no site Gauchazh, a gripe espanhola teria entrado pelo Porto de Rio Grande em 3 de outubro de 1918. Na ocasião, um barco a vapor, o Itajubá, teria aportado na cidade com 38 tripulantes acusando os sintomas da gripe. O historiador gaúcho Moacyr Flores informa, no levantamento antes referido, que o cemitério da Santa Casa de Porto Alegre tem valas comuns onde foram sepultados os cadáveres que chegavam a ser depositados nas calçadas para serem recolhidos durante a noite. Ainda que a mobilidade entre as regiões fosse menor e que Porto Alegre contasse, naquele período, com uma população que não alcançava duzentas mil pessoas os impactos foram significativos. O número de mortos no estado superou os três mil, quase metade desses na capital.
AT– Por que é importante as estudarmos?
Sergio Nunes Lopes– O estudo das pandemias tem motivações variadas. As ciências da saúde se ocupam desses fenômenos por razões mais pragmáticas. É aquele ramo da ciência que projeta a cura e ampara os protocolos a serem seguidos durante a época de contágio como o que experimentamos desde final de fevereiro deste ano. Outros ramos da ciência também se voltam para as pandemias. No caso das ciências humanas e sociais, por exemplo, é possível identificar quais as rupturas e as permanências em termos de organização social, institucional e humana durante e após os surtos. É a partir da pesquisa científica e do conhecimento produzido por tais pesquisas que se pode desenvolver vacinas e medicamentos eficientes. Infelizmente, no atual contexto, vivemos um momento de discurso contrário à ciência, emperrando inclusive uma pesquisa a nível nacional capitaneada pela Universidade Federal de Pelotas (UFpel), que visa justamente conhecer e combater o coronavírus. Em alguns municípios escolhidos para a coleta de amostra, autoridades locais não estão permitindo o trabalho dos pesquisadores. É o reflexo de um discurso contrário ao conhecimento científico que emana dos mais elevados cargos de comando do país na atual conjuntura.
AT– Por fim, podes citar algumas pandemias que a humanidade enfrentou, ao longo da história?
Sergio Nunes Lopes– Não só as epidemias de alcance mundial, portanto pandemias, merecem atenção. Já vivemos fenômenos de adoecimento e de todos eles restaram lições. O período de intenso contato pelo HIV, por exemplo, reformatou a forma de viver a sexualidade, a paralisia infantil mantém o mundo em alerta. No Afeganistão, Nigéria e Paquistão, a doença é ainda endêmica. Conforme o Ministério da Saúde não há casos confirmados nas Américas. Essa situação se dá graças à intensificação da vacinação. No Brasil não há circulação de poliovírus selvagem (da poliomielite) desde 1990. É exatamente a partir de investimentos pesados em ciência que temos a possibilidade de aprendermos sem a dor de muitas mortes. Nos anos 1980 vivemos um surto de sarampo, por exemplo, responsável pela morte de muitas crianças. Vive-se contemporaneamente campanhas absurdas contra vacinas. É mais um reflexo do discurso institucionalizado contra a ciência e a racionalidade.
