Lembram da piada do mineirinho na estação ferroviária? O filho pedia um refrigerante lá vinha um “trem de beber”, batia fome e comprava um “trem de comer”. Na hora do pito, acendia um “trem de fumar”. Na chegada do verdadeiro trem, saudou: “Óia! Lá vem a Coisa!” Tenho reparado que ao contrário do mineirinho, muita gente faz o inverso. Tudo vira coisa, um genérico substantivo feminino. Roupas, comidas e sentimentos. Coisas! Vocabulário curto. Tem gente fazendo aula de inglês e, passada a fase “the book is on the table”, se volta à última flor do Lácio expressando-se através de qualquer coisa – thing – em inglês.
Falta leitura que vá além das postagens em rede. Palavras e expressões idiomáticas inteligentes e criativas – de bons autores, inspiram ideias, ilustram diálogos com sinônimos e adjetivos bem colocados. A palavra coisa, por exemplo, é uma das mais vagas e gastas de nosso alfabeto. Genérica, aceita qualquer companhia, não tem obrigação de respeito a conceitos ou virtudes. Coisa é a banalização da essência. É um trem vazio, diria o mineirinho da piada. Um trilho abandonado.
Também percebo que estamos em processo de “coisificação” institucional. Gente, bichos, conceitos, ideologias transformados em coisas. Sem rosto, ou pior, com um rosto único e cruel na maioria das vezes.
Roubar para matar, matar para comer, comer até morrer e viver sem ter qualquer noção de civilidade virou mandamento porque as pessoas, os valores que as formam transformam-se em coisas inexplicáveis. Irascíveis, imutáveis, coisas necessárias e consumíveis.
Precisamos de dinheiro para qualquer coisa! Mas se for para um projeto vivo, específico e relevante, igualmente fazemos qualquer coisa para consegui-lo. A coisa é um vácuo que nos engole e mata virtudes. É aí que a coisa fede.
Está na hora de se pensar antes de se abraçar qualquer coisa que não tenha sentido ou, ao contrário, tenha vários, dezenas de motivos que, no fundo, não encontraram ainda seu mais perfeito sentido. E é preciso que tudo faça mais sentido ou seja menos “coisificável”.
Eu vi dois guris atirando pedras em lâmpadas na rua onde moro. Perguntei porque faziam aquilo e o mais velho disse que não tinham coisa nenhuma para fazer “a prefeitura é rica, pode comprar qualquer coisa”, respondeu. A coisa está lá, latente em seu poder destruidor.
Ninguém lhes ensinou que há dezenas de atividades que não são coisas, ou são coisas boas de se fazer. No momento em que deixam o limbo da ignorância passam a ter nome próprio. Um jogo que lhes estimule a imaginação, um livro que dê vocabulário, criatividade e sensibilidade. Encontrariam mais sentido e o prazer de atirar pedras, de qualquer coisa, passaria a constrangimento.
Ao tratar gente como coisa difícil, coisa ruim, ao negar oportunidades de cultura, trabalho, ao trocar educação por coisas, se permite a indiferença e o radicalismo. Coisa é tudo e não é nada. É um soldado atirando contra a multidão, porque seu dever ora, é proteger alguma coisa. É o bandido matando para obter alguma coisa de valor.
Melhor deixar as coisas às claras, dar-lhes um sentido menos genérico, por mais difícil que possa parecer. Em nome de alguma coisa maior que talvez vocês saibam o que é. Por enquanto a minha cara de tacho não virou qualquer coisa. Afinal, é um tacho! E reflete perplexidade, diante da ignorância que interessa a um tipo de poder corrupto e corporativista e faz da vida uma coisa sem sentido.
Que coisa, gente!