O lançamento do livro Arroio do Meio Canta em Alemão fechou a programação do Seminário Reflexos de 200 Anos de Imigração Alemã, realizado na terça-feira pelo Projeto 2024 e entidades vinculadas – Associação Cultural e Musical de Arroio do Meio (ACMA) e Círculo de Amigos de Boppard. O evento ocorreu no Seminário Sagrado Coração de Jesus de Arroio do Meio, onde, no decorrer do dia, ocorreram palestras e colóquios, nos quais pesquisadores expuseram aspectos e contribuições da imigração alemã.
À noite, sete corais em atividade no município: Coral Vozes da Forqueta, Coral Misto Concórdia de Palmas, Associação de Cantores Concórdia de São Caetano, Coral Misto Palmas Sul, Grupo Vocal Nota Livre, Coral Santa Cecília e o Coral Municipal de Arroio do Meio (Comam), apresentaram cantos em alemão, marcando o lançamento do livro. A obra, organizada por José Eduardo Ely, presidente da ACMA e também coordenador do Projeto 2024, traz o registro de informações dos corais, com nomes, dados históricos, regentes e diretorias, bem como músicas em alemão, com partituras. Todo o trabalho de levantamento de dados e organização foi feito de forma voluntária e a impressão foi custeada pela Câmara de Vereadores.
Ao falar sobre o livro, José Eduardo salientou que não se trata de uma obra literária e nem tem a pretensão de ser um levantamento histórico aprofundado. Definiu a publicação como um livro registro da atividade dos corais e salientou que três pontos o motivaram a organizar o material: o fato de não ter nenhum projeto parecido já executado apesar de haver sete corais ativos no município, o receio de que se perdesse parte da história das entidades e a esperança de que alguém possa avançar neste assunto. “Neste caso este trabalho de agora pode servir como uma semente, um ponto de partida. Um trabalho evidentemente muito simples, voluntário, de várias pessoas, viabilizado por meio de verba da Câmara de Vereadores. Ou seja, ninguém tem proveito de qualquer porte. Mas fica o registro do que existe, do que se tem neste tempo, no tempo atual, sobre o canto coral em Arroio do Meio”.
Eduardo agradeceu aos corais que aceitaram a participar, maestros, convidados que têm participação no livro, colegas do Projeto 2024 e as professoras que ajudaram na tarefa de tradução, à Câmara de Vereadores e ao filho Augusto que ajudou a conferir as partituras. “E assim se fez um livro, com muitas mãos e tudo voluntário”, ressaltou.
O organizador do livro ainda falou sobre as origens da sua predileção pelo canto coral, bem como a função social que ele tem. Disse que a música em alemão sempre esteve presente no círculo familiar e que uma das avós integrava o coral da igreja, em Estrela. “Desde pequeno eu sempre achava fantástica a divisão de vozes, as respostas que a gente percebe. Mas depois fui percebendo também a importância e a função social do canto coral. Não sei porque, mas criei um gosto tão especial pelo canto muito também pelo que ele representa para as pessoas que atuam. E podemos ver hoje pessoas jovens e também mais experientes que continuam cantando”, afirmou. Por fim parabenizou a todos os coralistas e desejou vida longa aos corais de Arroio do Meio.
Na sequência, o livro foi entregue aos vereadores presentes, convidados que tiveram participação na obra e aos corais. Cada integrante recebeu um exemplar.
Olhares voltados para o Bicentenário
Quem teve a oportunidade de acompanhar a programação o Seminário Reflexos de 200 Anos de Imigração Alemã, no decorrer da terça-feira, pôde entender um pouco mais sobre a própria história. Mesmo que sua origem não seja germânica. Isto porque as falas dos palestrantes e painelistas foram abrangentes e contextualizaram o passado, tecendo relação com o presente e o futuro.
Ainda na abertura, os organizadores, integrantes do Projeto 2024, destacaram a importância do evento para Arroio do Meio. A presidente do Círculo de Amigos de Boppard em Arroio do Meio, Eneida Führ Kuhn, destacou a parceria com a ACMA desde 2021 visando a celebração do Bicentenário. Ressaltou a solidez do convênio de cidade-irmã com Boppard desde 2013, e agradeceu ao trabalho dos pioneiros, Ruy e Roque Bersch, que atuaram de forma incisiva para que ele ocorresse. “Quantos jovens já puderam fazer o caminho de volta dos nossos antepassados, encontrando uma Alemanha diferente daquela de 200 anos atrás, encontrando uma acolhida especial em Boppard”, afirmou, ressaltando a importância do convênio neste ano do Bicentenário.
Já o coordenador do Projeto 2024, José Eduardo Ely, observou o caráter grandioso do evento, em termos de conteúdo. “Teremos oportunidade de ouvir e aprender bastante sobre o tema com autoridades no assunto”.
Uma festa da integração humana
Intercalando trechos em alemão e em português, o presidente da Comissão Oficial do Bicentenário da Imigração Alemã do Rio Grande do Sul, Rafael Gessinger, usou um trecho da composição do poeta Friedrich Schiller (Nona Sinfonia de Beethoven), que estreava em Viena em maio de 1824 para falar sobre o contexto atual. “Schiller está falando da alegria, que tem o poder de fazer sorrir, iluminar mentes e corações. Tem o poder de construir pontes e fazer amigos. Que tem o poder de vencer modismos que separam”, afirmou, ressaltando que este trecho inspira a forma de trabalho da Comissão. “O Rio Grande do Sul celebra a integração humana, o RS celebra o migrante e seus encontros culturais”.
Gessinger ressaltou que a Comissão volta seus olhos para o futuro, provocando diversos atores e entidades. “São muitas as frentes que estão sendo estimuladas. Ciências, cooperação técnica, economia, agricultura, intercâmbio acadêmico, arquitetura, gastronomia, música, cinema, cidadania, direitos humanos, literatura, língua alemã, sustentabilidade, turismo. Enfim, nada escapa ao Bicentenário”.
Ainda propôs uma reflexão simbólica sobre o migrante de ontem e de hoje. “Quem saiu da Alemanha há 200 anos? Quem chega na Alemanha hoje, no século XXI? Quem chegou no Brasil há 200 anos? Quem chega no Brasil hoje, em 2024? A resposta deve ser única: seres humanos, pessoas, nós. Quem saiu da Alemanha há 200 anos e quem chega na Alemanha hoje? Pessoas, seres humanos. Quem estava no Brasil há mais de 500 anos e quem chegou ao Brasil nos últimos séculos? Pessoas, seres humanos, nós. Antes de tudo o fenômeno migratório é um fenômeno humano”, complementando que não deve ser visto como fenômeno de um grupo étnico ou político.
Ciência do presente
Após a solenidade de abertura deu-se início às falas dos palestrantes e painelistas. O primeiro foi o professor Dr. Jorge da Cunha, que contextualizou a Alemanha – que só foi unificada em 1871 – e o Brasil pré e pós-imigração. Falou sobre a influência que o fim da escravidão teve para a imigração, bem como outros motivos pelos quais era interessante para o país trazer os imigrantes alemães e o porquê de eles vieram.
Cunha ressaltou o processo migratório da humanidade ao longo de sua existência e da importância da história para interpretação do presente. “História não é uma ciência do passado. História é uma ciência do presente. Quando nós entendemos, a partir das nossas memórias, quem nós somos e como nos tornamos quem nós somos, nós criamos possibilidades de nos compreender no tempo presente. Por isso, a gente não deve perder a memória do passado”.
A diversidade brasileira, que precisa ser festejada, na visão de Cunha, também foi destacada. “A história nos faz entender quem nós somos como humanos, e nos faz reconhecer que não precisamos nos submeter a essa ou aquela ideia, ou doutrina, mas que somos o resultado do diálogo que promovemos coletivamente. A própria contrariedade deste ou daquele partido, desta ou daquela ideia, pode ser um estímulo para a gente repensar a sua própria existência individual e, através do diálogo reconhecer a condição humana com exercício e o respeito à diversidade. Quando focamos a cultura do Vale do Taquari temos uma imensa diversidade e isso torna a todos melhores”.
Contribuição para a construção da nação brasileira
As inúmeras contribuições sociais, culturais e econômica dos alemães foram abordadas pelo mestre e escritor Décio Aloisio Schauren, nascido em Arroio do Meio. Em mais de uma hora, ele expôs as transformações que os imigrantes provocaram no Rio Grande do Sul. Falou sobre as dificuldades, a repressão sofrida, os esquecimentos, lendas e histórias, bem como da influência da cultura alemã em vários segmentos da sociedade.
Um dos grandes diferenciais dos imigrantes era que, diferentemente de colonizadores portugueses e espanhóis, que tinham vindo antes, os alemães vêm com vontade de ficar. Trazem outros valores culturais, a exemplo do trabalho livre – já que até então a produção era baseada na mão de obra escrava – da solidariedade, do associativismo, da escolarização. Iniciam no Rio Grande do Sul um novo modelo econômico, com a pequena propriedade, produção diversificada, com autossuficiência e autossustentabilidade. A produção excedente abastecia as cidades. Um embrião da atual agricultura familiar.
Na economia, o palestrante falou sobre a organização cooperativa, a criação das associações de agricultores e a fundação de empresas que impulsionaram o crescimento do Rio Grande do Sul. Os artesãos alemães, a partir da estrutura familiar, também foram responsáveis pelo início do processo de industrialização.
Schauren ressaltou o aspecto comunitário, com a construção de igrejas, cemitérios e escolas, cujos professores eram mantidos pelas famílias. O governo não oferecia condições de ensino à população. Em 1824, quando chegam os primeiros imigrantes, havia apenas uma escola pública em toda a Província de São Pedro. Já em 1937, quando o Governo Vargas por meio da Campanha de Nacionalização proíbe o ensino em alemão, eram 1500 escolas teuto-brasileiras no Estado.
A Campanha de Nacionalização, que também proibia a fala e qualquer manifestação cultural ou religiosa em língua estrangeira, causou impactos. Além da repressão violenta, com prisões e humilhações públicos de alemães, houve a destruição do sistema de ensino, fazendo com que houvesse a quebra da tradição alemã de transmitir o conhecimento de pais para filhos e o surgimento de uma geração de semianalfabetos.
Décio classificou as medidas como contraditórias e absurdas. Primeiro porque o Estado não havia contribuído para a construção de escolas ou preparado professores para o ensino da língua portuguesa e, em segundo, porque ao destruir o sistema escolar existente e não ofereceu nada em troca. No campo econômico e social, houve perdas irreparáveis, devidos aos saques, depredação e incêndio de livros, documentos, casas, igrejas, firmas e indústrias de alemães. Um retrocesso de décadas na economia.
Preservação
Um os pontos destacados pelo palestrante foi que a preservação do legado cultural das diversas nacionalidades não impede a harmonia entre todos. Como exemplo citou que é comum ver no RS descendentes de alemães frequentando o CTG e, ao mesmo tempo, que os gaúchos das mais diferentes origens participam de festividades como o kerb e a Oktoberfest, e comem cucas, tortas e apfelstrudel. Para ele, é justamente o amplo leque cultural que fazem do Brasil um país democrático, onde convivem as diferenças de todas as etnias, tornando-o um país de todas as cores, belo e vibrante.
Linguagem, provocações e impressões
O Seminário de Reflexos de 200 Anos de Imigração Alemã seguiu à tarde com a temática da linguagem, apresentada pela Dra. Karen Pupp Spinassé e Dra. Lisse Bender (representada por Jorge da Cunha) e reforçaram a importância das línguas de imigração, a exemplo do Hunsrückisch, trazido com os imigrantes da região de Hunsrück.
Na sequência falou o Dr. René Ernaini Gertz, que abordou o racismo, o nazismo e o neonazismo, e a forma equivocada de como são atribuídos, de forma generalizada e sem comprovação, aos descentes de alemães no Brasil.
Em alemão, o Dr. Peter Höhler, da Alemanha, encerrou as falas, colocando suas impressões sobre o Bicentenário.
Foto: Jaqueline Manica