
Quando criança em Arroio do Meio, era comum ver tropas de bois passarem caminhando na estrada. Até acontecia de a tropa andar pelas ruas do centro. E marchava mais ou menos resignada. O rumo sempre era o matadouro. Só de vez em quando, um animal tentava escapar do lote. Mas, assim que fosse notado, um dos tropeiros a cavalo, buscaria de volta a rês que ousara uma ideia própria…
Os bois não escolhiam. Eram tangidos numa
direção. E pronto.
A gente ficava olhando e não pensava nada. Só se espantava com a barulhada e a poeira.
A imagem da boiada retorna ao observar como gostamos de seguir o trilho já batido. Estamos confortavelmente acostumados a fazer as mesmas coisas, a pensar as mesmas coisas, sem alimentar dúvidas ou rebeldias.
Por isso mesmo, foi um chacoalhão o que nos veio do Uruguai recentemente. Falas e imagens de Pepe Mujica, o Ex-Presidente, que morreu no dia 13 último, fazem lembrar as antigas cenas de animais – mas, pelo lado avesso.
Pepe Mujica recusou o papel de rês no meio da boiada.
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O mais espantoso na carreira de Mujica não é o fato de ter sido guerrilheiro e, anos depois, Presidente da República. Ele chama a atenção por sentir liberdade suficiente para andar na contramão das escolhas aplaudidas por “todo mundo”. Podia ter gozado das delícias dos palácios e da maciez dos automóveis oficiais. Preferiu bancar caminhos próprios.
Nem quando ocupava o cargo de Presidente da República
se animou a deixar a chácara modesta, na periferia de Montevideo. Também não deixou as lidas de agricultor nem trocou o fusquinha 1987. A opção foi pela sobriedade, formando par com seu desagrado pelo consumismo. Gostava de lembrar a quem quisesse ouvir que não estava fazendo o elogio da pobreza. Estava afirmando os valores da vida simples. Ou você alcança a felicidade precisando de poucas coisas ou você não a alcança – costumava dizer. A felicidade está dentro e não fora de nós – arrematava.
Na mesma linha de líderes como Gandhi e Mandela,
Mujica não cultivou ódio por quem o perseguiu. Serenidade
foi a opção. Reconhecia que o movimento
Tupamaro (ao qual pertenceu na juventude)
também cometera excessos.
Onde há pessoas, há engano e erro – ele ensinava.
São coisas assim que fazem de Mujica um “case”, mais do que um herói. É extraordinário que alguém consiga tão tranquilamente sentir-se livre. Que tenha condições de escolher outro caminho do que integrar a “tropa da boiada”. É extraordinário reconhecer que ele não precisava imitar ninguém. Que confiava na capacidade de tomar decisões para a própria vida. Aliás, Mujica mesmo se surpreendia com o espanto que o rodeava, só por ele teimar em viver como queria.

