O jornalista autodidata, Otávio Deves, 73 anos, morador de Bela Vista, Arroio do Meio, foi um dos grandes incentivadores do futebol feminino regional ao longo de quase cinco décadas. Além de treinar o Bela Vista, foi o principal organizador da Copa Dullius – o campeonato regional realizado entre 1995 e 2007 – que chegou a ter a participação 26 equipes no Vale do Taquari.
Deves guarda súmulas, troféus e muitas lembranças. Relembra que no início, o futebol feminino era malvisto e proibido – o que foi documentado na criação do Conselho Nacional de Desportos em 1941 e ainda mais reprimido em 1965 durante o Regime Militar – por questões machistas.
O primeiro jogo na região ocorreu em outubro de 1972, na sede do Esporte Clube Brasinha de Alto Palmas, em Capitão. Foi uma iniciativa dos Clubes 4S Conquista da Copa, de São Luís, coordenado por Deves, e Progresso e Amizade de Alto Palmas, coordenado por Hilário Pedralli. Na época Capitão ainda pertencia a Arroio do Meio.
Para não terem problemas, os coordenadores pediram a permissão do então delegado de polícia, Adão Darde, que não emitiu nenhuma liberação oficial, mas incentivou a realização da partida. “Ele nos disse: está mais do que na hora de as mulheres jogarem. Se houvesse problemas teríamos de prestar depoimento e, caso contrário, manter o sigilo”, conta.
O jogo foi um sucesso. Lotou os arredores do antigo Brasinha de Alto Palmas, onde hoje está situado o açude, com centenas de curiosos. Conforme regulamento, no transcorrer da partida, só eram permitidas substituições de mulheres por homens relacionados na súmula, de igual número para cada lado, podendo dar apenas um toque na bola, sem permissão de chutes mais fortes, lançamentos, cobranças de faltas ou escanteios, que era exclusiva das mulheres. O placar ficou em 1×1 e, após o jogo, muita festa. “Era para ser sigiloso, mas em um mês o jogo acabou sendo repercutido no Arroio do Meio em Foco”, recorda.
A POPULARIZAÇÃO
Já sem tanta repressão, o futebol feminino foi se expandindo por todos os distritos de Arroio do Meio, sendo comum ver jogos entre equipes em Pouso Novo, Capitão, Forqueta, Travesseiro e sede.
Foram formadas e mantidas equipes por diversos anos em Linha 32, Arroio Grande, Forqueta, Palmas, Brasil de Bicudo, Sete de Setembro de São Caetano e Bela Vista. Outros tentaram como o Esperança de Rui Barbosa, mas foi por período curto. Igualmente formadas boas equipes em Nova Bréscia, Encantado, Muçum, Roca Sales e outras cidades. Estas equipes também jogaram futebol de salão e futebol sete.
Um torneio de minifutebol marcante foi realizado em 1976 no Esperança de Dona Rita pelo grupo de jovens da comunidade, que teve como um dos organizadores Júlio Alberto Gerhardt e uma das jogadoras a diretora Isoldi Bruxel, numa fase que antecedeu o jornalismo.
Em setembro de 1979, o Esporte Clube 1º de Maio, de Picada Felipe Essig, sediou a 1ª Edição das Olimpíadas da Juventude Regional – com os primeiros jogos rurais em âmbito nacional – que teve como atração o primeiro torneio de futebol feminino de proporção regional, reunindo oito equipes. A equipe vencedora foi do 4S Alvorada de Linha 32, que venceu um combinado de atletas de Pouso Novo e arredores.
A partir daí surgiram muitas equipes em cidades vizinhas. Em outubro de 1981, aconteceu um torneio regional em Lajeado organizado por Vilson Feldens, da Rádio Independente, comemorando 30 anos da emissora. Participaram clubes de Cruzeiro do Sul, Lajeado e Arroio do Meio, em duas chaves classificatórias. Na disputa do título, o Esportivo Lajeadense X Alvorada de Linha 32 que representou Arroio do Meio. O jogo final foi disputado no Estádio Florestal com lotação completa, na preliminar de jogo profissional, Lajeadense X Esportivo de Bento, válido pelo Campeonato Gaúcho. Foi o primeiro jogo de futebol feminino transmitido na região. O vencedor foi o Clube 4S Alvorada de Linha 32. Com este torneio, o futebol feminino cresceu muito na região e estado. Foram realizados muitos jogos amistosos e torneios.
Em 1982, o E. C. Bela Vista apoiou a criação da equipe de futebol feminino, aproveitando o potencial da então Calçados Incomex. A equipe foi chamada de Esmeraldas e ficou por quatro anos, quando foi totalmente integrada ao Clube e usando o nome de Bela Vista, que expandiu na segunda metade da década de 1980.
Em âmbito nacional, apenas em 1983 a modalidade foi regulamentada, após amplo debate político e técnico, envolvendo profissionais da educação física e líderes. “Participei na mobilização em âmbito estadual, mas a aprovação no CND foi longe de ser uma unanimidade. Para muitos, futebol era considerado coisa pra macho”, explica Otávio. Com isso, foi permitido que se pudesse competir, criar calendários, utilizar estádios e campos de futebol, ensinar nas escolas.
Deves lembra que num primeiro momento as equipes litorâneas do Sudeste do país valorizaram mais o futebol feminino.
O Bela Vista, treinado por ele, participou de um certame estadual em 1986, disputando com as equipes da grande Porto Alegre e Região do Sul do Estado. “Ficamos na chave do Grêmio e Internacional que vieram jogar no campo do Bela Vista. Na época mais de duas mil pessoas lotaram os arredores do campo do bairro, para assistir o Internacional, que tinha a craque Duda Luizelli, uma referência nacional semelhante ao fenômeno Martha da Seleção Brasileira. “Foi o último jogo dela pelo Inter. Na semana seguinte ela se apresentou na Itália”. Na mesma temporada, o Bela Vista, que tinha Bolinha e Adelene Fröhlich, e realizava treinos quase diários, venceu o Grêmio no Parque Marinha do Brasil por 2×1, ficando em 4º lugar da competição.
Na época o futebol feminino cresceu muito no Brasil. Depois sofreu uma queda violenta a partir de 1990, com medidas administrativas errôneas, centralizando em algumas equipes as principais atletas. Atitudes como a do dirigente do Vasco da Gama, Castor de Andrade e patrocinador Maisena, e de clubes estaduais, que em parte, continuam até hoje.