E devagarito chegou o frio, depois do veranico de maio. Levanto às 6h e, assim que baixa a temperatura, recordo-me da infância vivida no bairro Bela Vista. A localidade pouco lembra a paisagem da década de 60. Eu e minha irmã íamos a pé à Escola Luterana São Paulo. Vez por outra pegávamos carona nos caminhões da Kirst & Cia. Ltda., hoje a Bebidas Fruki.
A ‘pernada até a cidade’ em tempos de inverno era dolorosa. Em dias secos sofríamos com o vento congelante que, dias depois, apresentava um sintoma típico da época: rachadura nos lábios que fazia sangrar o entorno da boca ao longo de toda a estação.
Pior eram os dias de chuva. Como a estrada não era pavimentada – um luxo à época – o barro tomava conta do trecho. Sem falar das poças d’água que tornavam impossível chegar à escola com o uniforme impecável.
Minha infância na colônia, porém, não é apenas de recordações dolorosas. Podíamos usufruir da safra das bergamotas, laranjas – de umbigo e do céu -, além de limas, cítrico pouco apreciado. Estas frutas tinham outro sabor quando eram, digamos… ‘surrupiadas’ da vizinhança. Dizer ‘roubar’ ou ‘furtar’ soa criminoso, o que não era o caso.
A ansiedade pelas bergamotas era tanta que muitas vezes não esperávamos que ficassem maduras. Devorar as pencas, ainda verdes, deixava um perfume inconfundível que perdurava por dias. Era difícil tirar o odor das mãos, mesmo usando o sabão caseiro que a dona Gerti – minha mãe – fabricava no pátio dos fundos de casa.
Felizes de nós, ‘velhos e superados’ que tivemos o privilégio de viver esta época
O inverno tinha também as festas juninas que mobilizava escolas e comunidades do interior. Lembro-me das noites gélidas de espessa neblina que se misturava à fumaça enquanto gaúchos e caipiras confundiam a indumentária. Os adultos degustavam quentão, bebida vetada para nós que reconhecíamos o liquido pelo aroma de vinho e canela.
‘Lagartear’ ao sol, devorando bergamotas e laranjas depois do meio-dia, era obrigatório. Quando mudei para a cidade, nos fundos da casa – ao lado da casa de Cláudio Schmidt – havia um ônibus abandonado. Subíamos no teto do veículo e, escondidos pela vegetação, jogávamos as cascas nos pedestres com aquele movimento elíptico. Nos fins de semana a rotina era jogar futebol, taco ou bolinha de gude.
O inverno também unia famílias. Nós ficávamos à beira do fogão a lenha. O velho Giba se divertia colocando os pés sobre a tampa do depósito dos pedaços de pau. Também havia pinhão na chapa. Eu e minha irmã ouvíamos a conversa dos adultos. Diferente de hoje onde muitos filhos dão ordens aos pais, algo impensável à época.
Tempos diferentes, valores diversos, criação de filhos da modernidade. Impossível reproduzir aquele modelo hoje em dia, mas cá entre nós: algumas coisas mudaram, e para muito pior. Felizes de nós, ‘velhos e superados’ que tivemos o privilégio de viver esta época. Foram-se os anos, ficam as reminiscências. Para o conforto do coração, a alma e o espírito!

