Foi na infância que Kell Barth (26), natural de Arroio do Meio, teve seu primeiro contato com a arte. Atuando em peças de teatro da Escola Princesa Isabel, subindo em palcos para cantar, incentivado pela família e escola, por meio de aulas de canto, contato com instrumentos e dança, o jovem foi se descobrindo no mundo artístico. “Estar nos palcos era algo que eu gostava muito de fazer e a convite de Paulo Schnorr passei a me apresentar no Festival da Canção Arroio-meense (Festicam)”, relembra a primeira vez que esteve de frente para cerca de mil pessoas.
O arroio-meense conta que pesquisando sobre a cultura pop, quando estudante do Ensino Médio, se deparou com a cena ballroom e a dança vogue. “A ballroom é uma comunidade LGBTQIA+, um espaço de acolhimento e de segurança, que movimenta a cena cultural por meio de batalhas de dança vogue, que foi inspirada nas capas de revista do mesmo nome. Fui me aprofundando e conhecendo mais deste estilo – que ganhou popularidade nos anos 1990 e continua em uma crescente até os dias atuais”, explica.
Nesse contexto, Kell enxergou no meio artístico uma possibilidade de trabalho e começou a compor e gravar suas primeiras músicas, que resultou no lançamento do primeiro EP. Depois, surgiram convites para se apresentar em pubs e espaços culturais, com performances de dança, em sua maioria, vogue. A moda também seguiu nessa trajetória, oportunizando-a a participar de desfiles e ensaios fotográficos, que lhe rendeu estampar a capa da Revista Vally, em 2022. “Foi um dos últimos trabalhos que fiz no Rio Grande do Sul, a proposta era celebrar artistas da região“, conta.
Com muito carinho, a jovem recorda do curta Luna, produção de três alunos da Univates, que narra a história de vida de uma mulher trans, da qual foi protagonista. “Se confirmou como um projeto muito especial na minha carreira e jornada pessoal pela proximidade que tenho com a personagem principal, uma vez que também faço parte da comunidade trans, me identificando enquanto pessoa não binária”, revela, reconhecendo o quanto os amigos também sempre o apoiaram.
Autodidata, é no quarto, sozinho, em frente ao espelho, que Kell passa boa parte do tempo treinando e pesquisando materiais de terceiros que vão contribuir para chegar ao resultado desejado. Contudo, para brilhar, seja atuando, cantando, desfilando ou posando para fotos, ela diz que o segredo é simples: confiança e entrega. “Embora algumas vezes o nervosismo apareça, tento lembrar que só preciso confiar em mim e deixar os anos de preparo e experiência falarem por si”, pondera.
conexão Arroio do Meio – São Paulo
Em 2023, buscando novos horizontes e oportunidades, foi o estado de São Paulo que Kell escolheu para concretizar o sonho de viver da arte, explorar seu talento e inspirar outros artistas.
Como boas-vindas, já no segundo mês em território paulista, recebeu o convite para participar de um clipe da cantora Jotta A. No mesmo ano, realizou uma performance em uma festa temática da Beyoncé, momento mais do que especial, pois a artista americana é sua maior referência. E, ainda, garantiu uma participação no longa Baby, de Marcelo Caetano, que estreou nas telas de cinema em janeiro. “Se tornou o longa nacional mais premiado de 2024, em solo brasileiro. Foi uma surpresa. Marcelo, que é um respeitado diretor e preparador de elenco, tendo assinado o casting de trabalhos como Bacurau, ficou encantado com meu trabalho, divulgando o meu perfil em suas redes sociais, indicando um nome para ficar de olho no ano de 2025”, relata, entusiasmado.
No trabalho mais recente, em fase de gravação, Kell integra o elenco do longa chamado Luzia, uma co-produção brasileira-portuguesa, sem previsão de estreia. “Luzia conta a história de uma portuguesa, filha de uma bióloga brasileira, que vem para o Brasil buscar conhecer mais sobre suas raízes. A personagem se encontra comigo, em uma festa, durante essa passagem dela pelo Brasil e nós curtimos a noite juntos”, adianta.
“Cada projeto teve um peso diferente, em cada momento da minha vida, aflorando emoções únicas. Mesmo que seja o mais recente, ainda consigo me lembrar da sensação quase mágica de me ver numa tela de cinema. Acredito que o que mais marca, na verdade, é perceber que tudo acontece pelo meu esforço e dedicação. Perceber que minha família e amigos continuam celebrando as conquistas comigo é a garantia de que as minhas movimentações estão fazendo sentido”, afirma.
Diferente como na maioria dos finais felizes nas cenas de filmes, na vida real a classe artística nem sempre tem o valor que merece e os desafios para viver da arte precisam ser superados diariamente. Conforme Kell, este foi um dos fatores que motivou a deixar a cidade natal. “Infelizmente a maioria das pessoas, no Sul, viam meu trabalho como um passatempo e essa visão dificulta o acesso. Por exemplo, quando Baby foi lançado, ainda que fosse o filme com o maior número de prêmios no Brasil, no RS, ele só foi exibido em Porto Alegre. Na época, entrei em contato com a rede de cinemas que abrange o cinema do Shopping Lajeado, falei da minha participação e o quanto seria importante que amigos, familiares e outros artistas locais pudessem prestigiar. Porém não obtive uma resposta positiva e isso só reforçou a dificuldade de artistas locais serem celebrados”, lamenta.
Apesar dos desafios, Kell não se vê fora do mundo artístico e planeja uma carreira reconhecida, sem perder a identidade própria, e que inspire outros talentos, assim como Beyoncé um dia a influenciou. “Quero me consagrar enquanto multiartista LGBTQIA+ e deixar que o meu trabalho fale por si só. Mostrando que não há nada de errado em sonhar grande, que só depende de nós. Que eu consiga alcançar tamanha visibilidade a ponto de chamar a atenção da região dos Vales para apoiar novos artistas locais e incentivar estes a desenvolverem os seus talentos”, almeja.