
Ele abriu mais uma garrafa de vinho – melhor alternativa para enfrentar o frio úmido de junho às vésperas do Dia dos Namorados. Ela riu. Decididamente iria permanecer mais uns minutos ali. Sentia-se confortável e, embora soubesse da má vontade do veterano amigo com a possibilidade de uma aventura amorosa, fantasiou a possibilidade de utilização daquele “corpo estranho” por um par de horas e depois liberá-lo. Sem esperar por telefonemas, e-mails ou flores. Afinal, não é este o sonho da maioria dos homens? Perguntou aos botões da blusa que, a exemplo daqueles cantados na música de Roberto Carlos, mostravam-se dispostos a abrir-se.
Ele estranhou o olhar pensativo da moça e, querendo fugir do tema trabalho – estavam ali produzindo textos para o livro de um cliente – pateticamente passou a reclamar da inconstância do tempo. Será que vai chover? Ela provocou: “Você escreve sobre meteorologia? Ou é falta de assunto mesmo? Que tal falarmos sobre o presente para a namorada?” Ele esquivou-se. Achava-se velho demais para romances.
“Sou um quase cinquentão voltado a coisas práticas. Trabalho, comida boa e viagens quando tempo e dinheiro entram em conjunção astral. Relacionamentos exigem dedicação, o que não estou podendo oferecer”, disse com o ar solene de quem esquarteja segundas intenções. Laura abriu a bolsa e tirou um recorte de jornal, com trechos de uma crônica onde o autor definia o amor como um imenso deserto.
“Quem vive sob seus domínios deve enfrentar o sol escaldante, as tempestades de areia e o frio de tantas noites solitárias até merecer o oásis do bem viver a dois. O amante prevenido guarda no coração o beijo que sacia a fome da paixão e tatua em sua pele o cheiro, as mãos nervosas que cumprem o percurso do prazer. E transforma os sussurros em música, em hino de uma pátria a ser conquistada a cada novo dia. E assim, com corpo e alma consagrados a um sentimento único retomam a jornada do cotidiano com suas obrigações “, citou.
“A vida faz do amor uma eterna jornada por estas areias escaldantes. Tem o vendaval do dia a dia, o bafo morno da rotina, a sacudida das crises, das pequenas traições, das juras secretas que se transformaram em eco diante de um abismo de rancor e crediários. Quantas vezes amor me tens ferido! Quantas vezes, razão, me tens curado, escreveu Bocage”. Mas será que vale a pena esta cura? Perguntou ele.
Ela, já com as bochechas coradas pelo vinho, fechou a janela da sacada. Lá em baixo, a cidade reduzia seu movimento, alguns faróis ainda varriam as avenidas que escondem sombras, infelizmente, perigosas. Ele perguntou se deveria chamar um Uber. Laura, de volta à sala respondeu – decidida – que poderia dormir no sofá mesmo. Encerrava-se a discussão. Nada como se preparar para o Dia dos Namorados, improvisando uma paixão, mesmo que de mentira.
Uma sirene da ambulância ecoou sua angústia lá fora. Mas os suspiros emitidos naquele antigo apartamento, sinalizavam a certeza de que a relação amorosa ainda é um curativo eficiente, goste ou não Bocage. A próxima quinta-feira celebra o tal Dia dos Namorados. Comercial ou não, envio a minha sincera saudação àqueles que ainda não desistiram e que buscam seu pequeno oásis entre os áridos desertos do amor.

