
A gente saía bem cedo, caminhando de pés descalços na geada. A grama estava branca. Os únicos calçados existentes eram tamancos: sola de madeira e parte superior de couro. Era impossível caminhar sobre a grama congelada pois os pés resvalavam sobre os tamancos. Em alguns trechos, como próximo à casa do Bim Thumé, pai do futuro prefeito Moacir Thumé, a calçada congelava e estralava sob nossos pés. Depois das entregas de leite, esquentar os pés na porta do fogão, antes de seguir para o Grupo Escolar às 8h.
O recreio dava um alento. A sopa da Dona Neca ou o leite em pó deixavam a gente desperto. Como não gostava do leite, eu mantinha um vidro de Nescafé, misturado com açúcar, escondido na sala dos professores.
À tarde as tarefas se repetiam. Novos clientes deveriam receber o leite ao entardecer. Praticamente toda uma geração foi alimentada por nossas mãos, pois cheguei a trabalhar em três empregos sucessivos como entregador de leite. Sexta-feira à noite ainda era preciso armar bolão no Cube Aliança: dez cruzeiros não podiam ser desprezados.
Trabalhei como cobrador de firma, de clubes e caixeiro de bodega. Sempre ganhei meu próprio dinheiro. Aliás, não é bem verdade. Uma vez meu pai me deu três cruzeiros para eu ir no matiné, pois estava brincando sozinho em casa. Não sei quais eram suas intenções… Outra vez meu padrinho Edwino, pai do Clovis Haeser, deu-me uma moeda de dois cruzeiros: rendeu um sorvete e dois picolés. A terceira foi quando o mesmo padrinho, que era alfaiate, deu-me a fatiota de primeira comunhão. A madrinha, Tia Sina, mandou que eu examinasse o bolso. Surpresa! Havia um cruzeiro. Mandou examinar os demais… Que glória: HAVIA TREZES BOLSOS! Estava quase rico.
Ajudava seu Paulinho a entregar bebidas de caminhão e os vizinhos a carregar terra nas construções. Sempre saía uma Pepsi-cola ou um trocado para o cinema.
Andar na caçamba da camioneta do vizinho ou do caminhão não era risco. Não havia airbag, nem cinto de segurança. A gente andava sempre pelos matos. Depois da aula levava o almoço para as gurias que lavavam roupa no rio. Queimava os pés na areia quente. E era seguro para as meninas.
Sair à noite, caminhar mais de 15 km, subir o morro Botucaraí, brincar o dia inteiro e voltar, não trazia preocupação aos pais. Comer as frutas que encontrar e beber água pura das fontes.
Andávamos engarupados na bicicleta, sentados sobre o guidão. Não havia tampa de remédio a prova de crianças, nem capacete. A primeira vez que vim na FENAF foi de carona com um caminhoneiro.
Soltar pandorgas mandando mensagens para o céu… Andar de balanço pendurado em cipós sobre o arroio e rolar lomba abaixo em uma carreta ou dentro de um pneu. Isso que era emoção!
Futebol dependia sempre do dono da bola e o retorno para casa só depois de escurecer, quando os pirilampos já iluminavam a rua.
Não havia celular e ninguém podia nos localizar. Estudar era nos livros e pesquisa na biblioteca. Comia-se de tudo, inclusive as frutas do chão. Ninguém morreu ou ficou doente. Todos eram magros e, salvo algumas lombrigas, bem saudáveis. Entrava-se na casa dos amigos sem pedir ou bater. Brincava-se com as meninas quando não havia algo melhor para fazer e ninguém ficou traumatizado com isso.
Nos jogos eram escolhidos os melhores e fazia-se dois times equilibrados. O gol, a bola fora e as faltas eram tudo na consciência. Qualquer discussão acaba ali e quem faz o primeiro gol ganha.
Inventamos e construímos nosso brinquedos. Estudamos para aprender e adquirirmos uma profissão. Aprendemos o esforço, a dedicação, a responsabilidade e as consequências de nossos atos. Constituímos família. Criamos nossos filhos, abrindo-lhes oportunidades. Tivemos liberdade com responsabilidade. Enfim, vencemos…

