O assunto parece interminável. Realmente, a tragédia da boate Kiss será pauta para muita discussão, por muitos anos. E entre os debates, discute-se o papel da imprensa numa situação dessas. A propósito, a revista Época desta semana publica artigo do professor da USP, Eugênio Bucci. Vejamos: “Nas últimas duas semanas, você não ouviu falar de outra coisa. O fogo, a fumaça, os mortos de Santa Maria tomaram as capas de revistas, as redes sociais, o rádio, a TV, as
primeiras páginas de todos os jornais.
O logotipo da boate Kiss, até então uma fachada inexpressiva numa rua do interior gaúcho, ganhou visibilidade de grife global. A Kiss ganhou o status de um signo maligno, macabro, a marca pós-moderna da câmara de gás com música de fundo. Foi ao ar ao lado de velórios improvisados num ginásio de esportes. A desolação, o mau gosto, o grotesco e o horror se combinaram na mais intensa e intensiva cobertura jornalística da temporada.
Se tivesse ficado só nisso, só na emoção e nas lágrimas, a cobertura teria sido vã, embora legítima e compreensível. Se tivesse ficado apenas no registro dos pais que enterram filhos, no destino estúpido de uma juventude que morre
coletivamente num show de sanfona e fogos de artifício, teria cumprido um papel. Mas seria um papel menor.
Teria sido um teatro fúnebre e mais nada. Desta vez, a imprensa foi além de dar um close no choro fácil dos familiares e amigos. Não se acomodou ao espetáculo pelo espetáculo. Não se satisfez em ecoar os soluços dos que se debruçavam sobre caixões de adolescentes. A imprensa foi mais fundo e, nisso, prestou ao país um serviço que só ela poderia prestar.
Em lugar de apenas confortar o país abalado pelo trauma, ela ajudou o país a entender o que causou esse trauma. Por trilhas diversas, por iniciativas que brotavam de diferentes órgãos de imprensa, os repórteres e editores souberam
se perguntar das causas, das responsabilidades, das conexões subterrâneas que poderiam existir sob os escombros da Kiss.
Por essas trilhas, chegaram a uma teia de acumpliciamento entre empresários irresponsáveis, fiscais ávidos por propinas e autoridades negligentes. Que não está só em Santa Maria, mas em toda parte. Em lugar de se lambuzar no
sensacionalismo – esse ramo de negócio que transforma em show a infelicidade, o sangue e a miséria de gente pobre – e de ganhar dinheiro explorando o medo de gente sádica, a imprensa passou a investigar nada menos que o poder (o jornalismo só é jornalismo quando fere o poder).
Em lugar de apenas confortar o país, a imprensa ajudou a entender o que causa o trauma de Santa Maria. A história que começou com pilhas de cadáveres em ambulâncias e caminhões evoluiu rapidamente para a análise dos métodos de fiscalização das casas noturnas pela administração pública. Em poucos dias, prefeituras do Brasil inteiro tiveram de rever seus processos de concessão de alvarás.
Dirigentes de sindicatos de bares e restaurantes denunciaram agentes municipais que cobram caixinhas milionárias. O Brasil, que entrou nesta cobertura para velar vítimas inocentes, começou, com a mesma energia, a discutir corrupção e a cobrar justiça. O despertar dessa consciência não foi um efeito automático do desastre – foi resultado, isto sim, da cobertura jornalística, do modo como ela foi capaz de pautar um debate bem informado e bem fundamentado sobre as omissões do poder público. Esse trabalho jornalístico bem-sucedido não aparece todo dia.
Normalmente, as tragédias passam em branco, incólumes, como se fossem fatalidades gratuitas. De tempos em tempos, barcos afundam nos rios do norte do Brasil, matando dezenas de passageiros, e quase nada muda naquelas águas.
A ladroagem surrupia recursos das estradas brasileiras desde tempos imemoriais, e nem por isso os salteadores engravatados são devidamente condenados pelos milhares de acidentes fatais que anualmente arranham o asfalto malconservado.
Encontrar os nexos que ligam desastres ao poder público, aos corruptores privados não é tarefa corriqueira, embora seja a razão de ser da imprensa.
Normalmente, os elos que existem aí escapam à percepção da sociedade – e também dos jornalistas. Desta vez, foi diferente. O jornalismo mostrou – e o país entendeu – que a fumaça que escorria do teto da boate como se fosse uma
cascata escura não foi obra do acaso, mas uma chacina fabricada pela inépcia de uns aliada à esperteza de outros.
Não é sempre que a imprensa consegue contar uma história tão dolorosa por inteiro, ligando o visível ao que era invisível. Desta vez, foi diferente. Houve destemperos na cobertura?
Claro que sim. Houve equívocos? Inúmeros. Mas, naquilo que mais nos importa, houve este grande, este inestimável acerto. Os meninos e meninas de Santa Maria, tão alegres, perderam a vida em circunstâncias inaceitáveis.
Absurdas. Mas, se ajudarem a salvar outras vidas no futuro, não terão morrido completamente em vão.”