A passagem dos 50 anos do golpe militar no Brasil esta semana suscitou velhos rancores e debates. A barbaridade em que se transformou a nobre (e necessária) atividade política leva muitos brasileiros a bradar “saudades da ditadura”, conforme demonstram diversas pesquisas. Não tenho perfil no Facebook, nem possuo twitter, mas sei que há uma epidemia retrô, resultado de revolta, com a impunidade e uma boa dose de desinformação.
Minha mais nítida lembrança dos anos de chumbo foi ambientada dentro de casa. Meu pai sempre pertencia à oposição, foi militante do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) que duelava com a Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido dos donos do poder. Era época do bipartidarismo. A militância do velho Giba permitiu conviver com personagens de destaque da política gaúcha e brasileira, como Pedro Simon e Paulo Brossard.
Eles chegavam pelos fundos e sussurravam. Meu pai me chamava:
– Olha, guri… fica sentado no muro lá da frente e se o jipe da Brigada Militar passar mais de duas vezes, avisa! – repetia.
Ele e os visitantes ficavam horas articulando no escuro. Graças a Deus nunca a viatura dos brigadianos passou por ali, mas a cena é inesquecível. Em 1968 meu pai elegeu-se vereador pelo MDB, mas mantinha relações civilizadas com o prefeito (e com a bancada) da Arena. A postura de conviver pacificamente com “os contrários” me fascina até hoje.
– Aprende a conviver com aqueles que pensam de maneira diferente que tu saberás enfrentar todas as dificuldades da vida – ensinava diante do meu espanto.
O desenvolvimento alcançado na ditadura endividou o país que até hoje paga juros abusivos a bancos internacionais
Atualmente ouço muita gente tecendo loas à ditadura. Afirmam – entre outras coisas – que não se roubava como hoje. Acho, porém, que escondiam de nós as notícias comprometedoras do governo de plantão. Como diz o velho ditado “quando a guerra começa, a primeira vítima é a verdade”. O controle dos meios de comunicação – e de manifestações artísticas como música e teatro – foi implacável, traumática, sistemática e violenta como toda censura.
O desenvolvimento econômico da época – outro argumento dos saudosos – é incontestável. Contesto, apenas, o alto custo que pagamos até hoje através de empréstimos bilionários contraídos a juros escorchantes junto a organismos internacionais. Isso inflou o endividamento histórico e infindável de consequências corrosivas que ainda perduram.
O amordaçamento da oposição, através das sucessivas cassações lastreadas pelo famigerado Ato Institucional nº 5, conhecido historicamente como AI-5, foi outras faceta da sonegação da verdade, da opinião contrária, da “outra versão” tão necessária para assegurar nossos direitos. Respeito profundamente a opinião daqueles que têm saudades da ditadura, mas lembro que, se o sistema fosse mantido, seria impossível que estes manifestassem seus pontos de vista.
A democracia é um sistema falho, mas ainda é o melhor que existe. Usufruir o direito de manifestação, mesmo com opiniões equivocadas é, talvez, o maior mérito da liberdade.
Amordaçar os contrários não é disputa. É covardia, ausência de razão e estímulo à injustiça.