Enquanto a região Sudeste do Brasil sofre com a pior falta de água potável da história, localidades do interior do Vale do Taquari com abundância de recursos hídricos e paisagens paradisíacas foram abandonadas pelos moradores, que migraram em busca de melhor renda em centros urbanos maiores.
O caminho tem sido trilhado há pelo menos quatro décadas. No início da colonização, na primeira metade do século XX, a oferta de terras tornou a microrregião atrativa. No modal produtivo existente, o número de integrantes das famílias determinava o potencial de cada propriedade.
Mas com a mecanização agrícola, ocorrida nas décadas de 1960 e 1970 parte da população rural adquiriu áreas maiores em outras regiões – noroeste do Estado, Santa Catarina, Paraná, Centro Oeste e Sudeste – a fim de ampliar a produção e o lucro.
Já na transição das décadas de 1970 e 1980, com o crescimento da indústria, a mão de obra remanescente foi absorvida pela indústria e consequentemente pelo comércio, em maior incidência nos grandes centros urbanos onde existiam oportunidades melhores.
Apesar de ter diminuído em comparação com os períodos anteriores, o êxodo rural continua. A sucessão familiar já virou política de estado, mas na prática são poucos os jovens que ficam ou voltam para a propriedade dos pais.
O desinteresse não é exclusivo dos jovens. Os índices de desistência também são altos entre os adultos. A explicação é óbvia. As exigências sanitárias e tecnológicas impostas pelas integradoras e cooperativas, o custo dos investimentos e da mão de obra, inviabiliza a manutenção dos empreendimentos, que se tornam obsoletos para a competitividade do mercado.
Na zona rural de Travesseiro aproximadamente 30 moradias estão abandonadas ou desocupadas. O levantamento foi feito pela reportagem do AT nas localidades de Picada Felipe Essig, Três Saltos, São João, Barra do Fão, São Miguel e Linha Macuco. Só foram contabilizados imóveis que podem ser vistos das estradas gerais que interligam as comunidades.
Alguns locais estão em ruínas ou foram alvo de vândalos. Outros estão desabitados há décadas, mas recebem a atenção dos herdeiros que visitam a propriedade periodicamente. E há os que foram abandonados recentemente. São imóveis com condições estruturais superiores a muitas casas habitadas. Também é possível vislumbrar aviários, galinheiros, chiqueiros e estufas ociosos, e áreas de terras onde a vegetação tomou conta de potreiros e lavouras.
Imóveis públicos, como de escolas, também tiveram as estruturas abandonadas devido ao déficit de alunos necessário para manter o funcionamento viável. O mesmo ocorre com algumas entidades, como clubes de futebol. O êxodo ainda colaborou para o fechamento de casas de comércio tradicionais. A falta de perspectivas inclusive afeta a zona urbana, especialmente no mercado de trabalho.
JUSTIFICATIVAS DO ABANDONO
Na visão do estudante do 3º ano do Ensino Médio da Monsenhor Seger, Eduardo Bolkenhagen, 16 anos, morador de São João, o número de imóveis abandonados está relacionado aos falecimentos e a falta de sucessão familiar, “o pessoal foi para cidades maiores. Alguns retornam esporadicamente”, conta. Apesar da tendência negativa, Bolkenhagen vê futuro na agricultura. O jovem pretende dar sequência nos negócios da família envolvendo a produção de grãos nas várzeas de Travesseiro, Marques de Souza e Vale Verde.
Já os aposentados Silvério Schneider, 65 anos de Três Saltos Baixo e Breno Stork, 60 anos de Picada Essig, destacam que a nova geração prefere trabalhar com carteira assinada e direitos trabalhistas, “a lavoura não dá mais dinheiro. Na integração de suínos ou aves falta mão de obra. E no leite as exigências em tecnologia e rigor sanitário são muito altos. Além disso o preço pago pelo litro está pior que há 4 anos, quando já valia R$ 0,80, sendo que o valor da ração, energia e insumos subiu”, explicam.
Entretanto, conforme eles, muitas pessoas da cidade que saíram da zona rural estão voltando na aposentadoria. “O valor do salário é razoável para os que atingem a subsistência alimentar. Além disso, a vida no interior é mais segura e mais simples. Na cidade, além da alimentação mais cara, as pessoas não podem vestir-se de forma desleixada, sob o risco de serem julgadas de mendigos ou andarilhos”, comparam.
O consultor técnico da Mondial Veículos de Lajeado, Diego Ahne, 23 anos, optou em sair de Travesseiro pelas oportunidades de trabalho na área em que estuda, manutenção automotiva. “Sempre volto nos fins de semana para rever amigos e familiares”, revela.
Com uma área de 12,5 hectares à venda em Linha Macuco, José Camini, 75 anos, abandonou a propriedade há cerca de um ano após o falecimento de sua esposa. Atualmente ele reside a 2,5 km do local, juntamente com seu filho, Adelar, 39 anos, funcionário de uma agropecuária. “Não vale a pena investir R$ 600 mil num aviário e em equipamentos agrícolas. Nunca vai se pagar”, alega o filho Adelar, que saiu do interior aos 20 anos para trabalhar em restaurantes em Porto Alegre, juntamente com suas irmãs.
A propriedade possui casa de alvenaria de 94 metros quadrados, potreiro, lavoura com acesso mecanizado e Área de Preservação Permanente (APP).
A EXTINÇÃO DE UMA COMUNIDADE
Talvez o caso mais evidente é o de Linha Fortaleza, que ficava situada na divisa do município com Nova Bréscia. No trajeto de seis quilômetros até o limite do território da cidade vizinha não sobraram moradores para contar os motivos mais detalhados da emigração.
De acordo com a moradora da localidade de Pinheiros, Nova Bréscia, Marli Mânica, a extinta comunidade de Fortaleza, está sem moradores há pelo menos três décadas. Na localidade moravam oito famílias, quatro delas eram descendentes da família Scheibel. Todos sobreviviam do cultivo de milho, feijão e soja. A suinocultura e bovinocultura eram voltadas a subsistência.
Havia inclusive uma sede comunitária com escola que realizava eventos comunitários como encontros de jovens e atividades esportivas. Com o passar dos anos os moradores se transferiram para regiões metropolitanas em Porto Alegre e Minas Gerais. Há relatos de que descendentes chegaram a trabalhar em casas de família e no comércio em Arroio do Meio. Uma das jovens teria passado num concurso público e atuado numa agência bancária de Roca Sales.
FALTOU DIVERSIFICAÇÃO
O presidente da Câmara de Vereadores, Airton da Costa (PT), 51 anos, líder do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), lamenta as falhas de articulação da Secretaria Municipal da Agricultura e entidades, “ao invés de investir na diversificação pensando no futuro, toda a política foi voltada para os segmentos da avicultura, suíno e bovinocultura”, aponta.
Segundo o petista, o endividamento ocorre desde a época da fumicultura. Famílias ficaram sem crédito para reerguer suas propriedades. Após contratos com fumageiras, foram negativados no Serasa. “O leite que era pra ser a saída das pequenas propriedades, agora as inviabilizou. São exigidas instalações canalizadas e resfriamento à granel, além de uma produção superior a 100 litros diários e o preço praticado é de R$ 0,75 por litro, em média. Estamos na expectativa se a agroindústria de produtos lácteos Rancho Bello, de Picada Essig, que recebeu incentivos públicos, vai absorver e valorizar a produção local, embora não se conheça o real contexto da empresa”, dimensiona.
Da Costa afirma ter alertado para a necessidade de diversificação na agricultura familiar, pois o assunto é abordado há pelo menos 25 anos em palestras, “eu coloquei na prática e não inviabilizei minha propriedade”, garante.
Em seu minifúndio, com área de 3,5 hectares, situado em Três Saltos Baixo, dá o exemplo prático de sustentabilidade na produção de hortaliças, beneficiamento de alimentos de origem animal e subsistência. Sua visão empreendedora lhe dá destaque por implantar métodos produtivos que demandam investimentos astronômicos, como os exigidos pelas integradoras. Por isso, periodicamente sua propriedade recebe visitas de agentes públicos a fim de conhecer e difundir essas práticas sustentáveis em seus municípios.
No campo governamental cobra a contratação de servidores com conhecimentos práticos na área da agricultura. Segundo ele, a falta de perspectivas tem motivado a desistência dos jovens na sucessão familiar. Só na localidade de Três Saltos, conforme levantamento, pelo menos 22 rapazes e moças saíram do campo para a cidade, “só estão permanecendo adultos com idade próxima a 50 anos, devido a aposentadoria”, apura.
Para da Costa, os incentivos concedidos à Rancho Bello, poderiam ter sido direcionados a cinco agroindústrias e reaproveitar prédios públicos ociosos. Da mesma forma contesta o crescimento da indústria e do comércio que teria ocorrido na zona urbana, “enquanto novas empresas abriram, muitos estabelecimentos fecharam”, compara.
INTEGRADOS MANTÊM ECONOMIA
A arrecadação na Agropecuária que representava 86% na economia local na década passada, ficou abaixo de 68% em 2013 – após se recuperar dos 59% registrados em 2010 devido a investimentos em granjas e bovinocultura. Mas as projeções dos mais pessimistas são de que a participação do setor na economia fique abaixo de 50%, embora secretários de governo alegam que há crescimento na economia como um todo.
De acordo com o Secretário Municipal da Agricultura, Ildo Rodriguez Godoy, apesar das desistências – que geralmente estão atreladas a fatores geográficos, dificultando a mecanização, e a idade avançada –, os investimentos feitos nas propriedades onde há sucessão familiar incrementaram a produção consideravelmente. Esta profissionalização no segmento viabiliza o repasse de R$ 21,65% do orçamento do município à Agricultura, que continua sendo o principal setor da economia local.
“Enquanto numas localidades, como em Três Saltos Médio a agricultura está sumindo, em outras ela está renascendo”, repercute o engenheiro agrônomo André Rosenbach.