Nos últimos meses, o Brasil enfrenta uma combinação de desastres naturais que têm impactado fortemente o agronegócio: as enchentes no Sul do país e as queimadas no Norte e Centro-Oeste. Ambos os fenômenos trouxeram desafios inéditos, exigindo atenção de pequenos e grandes produtores e também impactando as cadeias produtivas e os consumidores.
A ocorrência de queimadas em áreas agrícolas, embora não seja uma novidade, ganhou dimensões alarmantes nos últimos meses. A fumaça dessas queimadas chegou até o Rio Grande do Sul, afetando a qualidade do ar e os índices de saúde pública. Contudo, os impactos se estendem para muito além da visibilidade imediata.
Impactos locais e nacionais
As queimadas sempre fizeram parte de algumas práticas agrícolas, como na cultura da cana-de-açúcar, onde a queima controlada é utilizada em certas fases do cultivo. No entanto, o cenário atual, marcado por incêndios descontrolados, ultrapassa qualquer padrão anterior. “Assim como as enchentes na região Sul acenderam um alerta, as queimadas deste ano, pela sua dimensão, também trouxeram consequências gravíssimas”, explica o coordenador do curso Técnico em Agronegócio da Univates, Alexandre Marcelo Schneider.
Ele avalia que o primeiro e mais evidente impacto é o local, com a perda direta da produção, tanto para pequenos quanto grandes produtores. Os pequenos agricultores são os mais vulneráveis, já que muitas vezes dependem exclusivamente da colheita anual, e não possuem capital para repor as perdas ou buscar alternativas. Já grandes produtores, mais capitalizados, conseguem fazer um melhor enfrentamento da situação, ainda que as perdas sejam significativas.
Além disso, pontua que os efeitos das queimadas no solo, especialmente em áreas de produção agrícola, podem perdurar por muitos anos, comprometendo safras futuras. A estimativa é de que a recuperação total de uma área afetada por incêndios possa levar até 20 anos, segundo algumas pesquisas.
Como impacto marginal, cita o efeito da fumaça, que igualmente afeta a saúde de bovinos, suínos e aves e interfere no desenvolvimento de plantas, por causa da redução da luz solar. Outro ponto de alerta é para com as abelhas, tão importantes para a polinização. “No momento que o ar está mais poluído, está mais fechado, tem menos insolação, menos luz solar, isso vai afetar o crescimento das plantas, vai afetar também o comportamento dos insetos, a questão da polinização. Então de alguma maneira os efeitos marginais acabam se estendendo para toda a agricultura”.
Reflexos nas cadeias produtivas
Setores como o da cana-de-açúcar, pecuária de corte e café têm sofrido grandes impactos. No caso da cana, o paradoxo é evidente: embora a queima seja uma técnica usada historicamente, a severidade dos incêndios fora de controle atingiu principalmente lavouras jovens, ainda não preparadas para esse processo, comprometendo mais de um R$ 1 bilhão. Esse cenário já está provocando oscilações nos preços internacionais do açúcar.
A pecuária de corte também sente os efeitos, especialmente em estados como Mato Grosso, onde pastagens foram destruídas pelas chamas. Schneider dimensiona que a falta de forragem afetará a alimentação do gado nos próximos meses, comprometendo o peso dos animais e atrasando a produção. Além disso, deslocamentos emergenciais de rebanhos e perdas de animais foram relatados em várias regiões.
Culturas como a fruticultura e a cafeicultura, que dependem de plantas perenes, são especialmente vulneráveis. Lavouras de café, laranja e outras frutas, que demoram anos para atingir a maturidade produtiva, podem ter seus ciclos interrompidos, prejudicando não apenas a safra atual, mas também as seguintes.
Reflexos no consumidor
Para o coordenador, embora seja difícil prever com exatidão o impacto final no preço dos alimentos, já é possível antever uma pressão sobre eles. A combinação de queimadas, perdas de safra e aumento nos custos logísticos pode se refletir em aumento de preços para o consumidor.
Em regiões mais próximas dos incêndios e das áreas mais afetadas, como os grandes centros urbanos que dependem da logística local de alimentos, os consumidores podem sentir os primeiros aumentos de preços com maior intensidade. Além disso, produtos substitutos, podem ganhar espaço no mercado caso itens prejudicados se tornem muito caros.
Preocupações futuras
Outro reflexo importante, que pode afetar a longo prazo o agronegócio brasileiro, são as possíveis restrições comerciais impostas por compradores internacionais, especialmente a União Europeia. Com os países importadores adotando uma legislação ambiental cada vez mais rígida, especialmente voltada para o combate ao desmatamento, o Brasil corre o risco de enfrentar barreiras na exportação de commodities. “O país está se preparando para negociar uma flexibilização das regras, mas os eventos recentes de queimadas descontroladas e desmatamento ilegal pesam totalmente contra nós”, adverte.
A partir de 2025, países que não comprovarem práticas agrícolas sustentáveis poderão sofrer sanções comerciais, o que afetaria diretamente exportações brasileiras. Com a Europa representando cerca de 35% das exportações agropecuárias do Brasil, essa é uma preocupação real para o setor. “Aí não interessa se é de Santa Catarina, Paraná, ou Rio Grande do Sul. Não tem zoneamento. O Brasil acaba levando essa marca de país que não respeita a legislação ambiental e isso vai afetar e trazer restrições na exportação de produtos”.
O futuro do agro
Para Alexandre, os desafios impostos pelas queimadas e enchentes demonstram a necessidade urgente de uma gestão ambiental mais rigorosa e de práticas agrícolas mais sustentáveis. O Brasil, como um dos maiores produtores agrícolas do mundo, está diante de uma encruzilhada. O futuro do agronegócio depende não apenas da superação das adversidades naturais, mas da adaptação às exigências de um mercado global cada vez mais atento às questões ambientais.
Defende que não se pode normalizar os desastres naturais a exemplo de cheias e queimadas como simplesmente algo que sempre aconteceu e ignorar a gravidade dos problemas. “É fundamental repensar nosso modelo de agronegócio. Há muito tempo se discute que o meio ambiente não é uma preocupação apenas de terceiros, as consequências de nossas ações já estão se manifestando. A ideia de que o solo, o ar e a água são recursos infinitos precisa ser revista urgentemente. O foco deve ser a recuperação e a sustentabilidade. Precisamos promover práticas realmente eficazes de reflorestamento e recuperação de áreas degradadas, e isso começa pela educação e conscientização. No entanto, muitos ainda não percebem a gravidade da situação. Cada um deve fazer a sua parte, mesmo que suas ações pareçam pequenas. Tudo impacta”.
Além disso, destaca que o produtor rural não pode ser visto como o único responsável por esses problemas. “O agronegócio é diverso, e há muitos que se dedicam à proteção ambiental”, observa, complementando que o envolvimento do consumidor também é necessário, valorizando produtos que tenham uma origem sustentável e certificada.
As lideranças políticas também têm um papel importante nesse processo. “Algumas se esquivam do debate ambiental por questões políticas. É fundamental que todos, especialmente os líderes, tenham coragem para enfrentar esses desafios e discutir abertamente a proteção do meio ambiente”.
Preparação profissional
Com as mudanças climáticas em curso, é natural que a universidade volte seu olhar sobre o tema ao preparar os profissionais do futuro, que terão de lidar cada vez mais com situações extremas. Schneider afirma que o curso Técnico em Agronegócio vai muito além da qualificação técnica dos alunos. “O foco é desenvolver uma consciência sobre a realidade que vivemos, promovendo uma postura proativa para fazer a diferença. Discutimos tecnologias que vão desde a eficiência energética e a agricultura de precisão até o reuso de materiais na produção agrícola. Recentemente, após as cheias na região, a recuperação de áreas degradadas e o reflorestamento gradativo se tornaram temas centrais nas aulas. Muitos alunos têm feito seus trabalhos de conclusão de curso relacionados a essas questões, refletindo nosso compromisso com a sustentabilidade”.
Além da formação acadêmica, é promovida a extensão tanto para dentro quanto para fora da universidade. Isso significa que os alunos levam o que aprendem para suas comunidades e também são trazidos profissionais do setor para debater com eles em sala de aula. “O objetivo é criar o conceito de que não adianta só trabalhar na prevenção. Agora estamos na fase de trabalhar na recuperação. Adaptar e cuidar não é mais suficiente. Nossos alunos saem também com essa concepção de achar alternativas a esse modelo de agricultura que hoje existe, que cria uma certa dependência, desde a semente até o uso de insumos específicos para que tenha o rendimento desejado. Precisamos fazer com que o produtor volte a ter autonomia, que consiga produzir e cuidar do meio ambiente com as tecnologias que ele tem na propriedade e não ficar dependente de fontes externas”.
Foto: Mayandi Inzaulgarat/Ibama