De repente, o lindo vaso estraçalha-se na calçada. Logo em seguida, a preocupada doméstica retira todos os outros que adornavam o parapeito da sacada do edifício. Percebeu que a beleza de uma janela florida está aliada à segurança de quem pode admirá-la. “Conversei com minha patroa e ela concordou comigo, nada de vasos ou outros objetos por ali”. Neurotizada, Liete agora observa os edifícios que ostentam vasos enormes, alguns amarrados com arames podres que de nada ajudariam em uma ventania ou uma batida distraída como aconteceu com ela. “A maioria dos condomínios proíbe este tipo de coisa. Mas sempre tem quem ignore as leis”, percebe Liete, em sua experiência como faxineira. Como sabe que eu tenho uma coluna em jornal, aproveitou para relatar outras irresponsabilidades. Algumas sentidas na própria pele.
Um dia após este incidente que, por sorte, não vitimou ninguém – em uma rua movimentada de bairro nobre de Porto Alegre, Liete viveu outro drama ao aceitar carona de seu irmão. No meio do caminho, três atos irresponsáveis: um automóvel cruza a preferencial em alta velocidade; seu irmão pisa no freio desregulado e o carro sai de lado. Bate na calçada, capota e a coitada da Liete machuca-se toda: o cinto de segurança não resistiu a seu peso, “estava puído, velho demais”. A Liete quebrou um braço e machucou o pescoço. O dano material também foi grande, pois o carro antigo não tinha seguro. Isso sem contar o susto dos pedestres que se dirigiam a uma parada de ônibus. “Uma manutenção não custa muito”, reclamou ela ao mano.
No fundo, salvo fatalidades verdadeiramente improváveis, a Liete percebeu que a grande maioria dos problemas poderia ser evitado caso não se confiasse tanto na sorte. Por exemplo, no mês passado, Liete encontrou um ex-colega de escola nas páginas policiais dos jornais. “Lá estava ele, preso por furto e tentativa de homicídio. Nós dois passamos as mesmas dificuldades para estudar. Só que ele optou pela rua. Estudar não estava com nada. Confiou demais na sorte, não fez o que devia e se deu mal”, filosofa ela. Foi como um vaso que poderia dar flores, mas despencou do parapeito. E juntar os cacos, agora, será muito mais difícil.
Mas o mais triste ele assistiu em uma movimentada loja de Porto Alegre, às vésperas do Natal. Movimento frenético, a mão puxa o filho pela mão que insiste em um brinquedo novo. “O Papai Noel vai te dar, não te preocupa”. O guri sorri um sorriso do tamanho da felicidade. “Vai mesmo?” Ele responde: “Claro, ele vê tudo.” E saiu com o guri afobada em direção à porta de saída. Ainda na calçada, levou um susto ao ser parada por um segurança da loja que pediu para examinar-lhe a bolsa. O guri de olhinhos arregalados viu a mãe balbuciar coisas sem nexo enquanto ele sacava fora o brinquedo sonhado pelo filho. E não fora o Papai Noel que o depositara ali. Ela chorou, disse que era pobre, que tivera pena do filho, criado por ela, sem pai, sem família.
Liete disse que o segurança viu o desespero do menino, que o fitava com medo, raiva e vergonha. “Não foi minha mãe que botou ali, foi o Papai Noel”. O homem soltou o braço da mulher, conferiu o brinquedo, que estava lacrado e disse: “Talvez não seja esse o teu brinquedo, tem poucos em estoque. Mas a tua mãe vai negociar com ele algo que nunca que te fará sentir vergonha”, e voltou, admirado pelos que acompanharam a cena. “Ser pobre não é jogar a dignidade no lixo, porque aí você vira marginal”, me disse com sabedoria Liete que não é rica, mas por ser ética conquista tudo o que almeja.