Os olhos estavam cansados daquela paisagem. Lá no fundo alguém acenava e não percebia quem era. Uma mão solta no ar, quase sem corpo, desfocada estava contra a luz do sol. Haviam sido dias difíceis. Pensou em ligar para o marido. Três dias em viagem, sem carinho. Virou-se de costas para a luz e retomou a caminhada. Viajava a trabalho e simplesmente sentia-se enjoada desta obrigatória distância de casa. Pior, passaria o final de semana sozinha. Alguns contratos precisavam ser revisados e os clientes insistiram para uma reunião no sábado ao meio-dia. “Esses caras não têm família?” Em casa, os filhos já adultos estavam independentes, mas o esposo ainda remava contra a maré imposta por rendimentos baixos.
Pequeno empresário no Brasil é escravo de muitos patrões e vítima da sede por impostos dos governos e do mercado, sempre sensível a coisas exteriores. Ela até desconfiava que ele – talvez cansado dessa diferença – buscasse um complemento fora de casa. “Sentir-se mais macho, já que no salário perdia”, imaginou, sem dar-se conta do preconceito que alimentava. Ora, ele atendia uma “mulherada” imensa. Era marceneiro, e dos bons! Produzia peças para artesanato. Não, ele não faria isso. Lembrou daquela italiana sem graça que encomendara 30 coelhinhos para uma feira em Canoas. A cliente bonitona nos seus quase 50, era a favorita dele. Vá lá, consumia muito. Mas detestava a intimidade que conquistara com o passar do tempo e os rasgados elogios ao esposo. “Aí tem…” pensava.
Em Florianópolis, cercada de executivos de grandes empresas, bem resolvidos financeiramente e cheios de disposição para uma aventura instantânea, e preocupada com o marido. O pobre deveria estar, naquele exato momento, no atelier com seus auxiliares, trabalhando para atender a demanda de Páscoa. Bem escondido em uma rua simples, sem charme, sem paisagem bonita, na distante zona norte de Porto Alegre. “Nem barba ele faz, quando não estou”. Aproveita para trabalhar mais. “Mas fica muito charmoso,” lembrou, sentindo falta dos pelos a lhe arrepiar a pele fina. Linda.
“Cretino!” Exclamou, em voz alta. À beira-mar, ninguém lhe escutou. Quem sabe não seria hora de apimentar a vida? Aquele diretor da empresa concorrente lhe sugerira um vinho. Sem compromisso. Quebrar o gelo, trocar ideias de trabalho. “Sei…” Em casa, o maridão entalhando coelhinhos e ela, solitária, carente, insatisfeita. Arrependeu-se na hora. Mas se ele aprontar… “Dou o troco”.
O sol era só uma mancha no céu bem limpo e aquela visão distante – a da mão que acenava – ganhava forma, embora ainda imprecisa. “Preciso trocar a lente dos óculos”, concordou consigo mesma. E vai ser um modelo sexy, caso o cretino esteja gastando o pouco que ganha com outra. Ligou para o marido. Conferir é prevenir, sentenciou. Caiu na caixa postal. Na quinta tentativa, um funcionário atendeu e disse saíra para entregar encomendas. “À italiana!”
O sangue cobriu as imagens de um tom quente de puro ódio. “E eu boba, insisti para ele fazer aquela dieta. Agora perdeu uns quilinhos e já se sente um galã!” Ao mesmo tempo, aquele perfil desfocado ganhava forma. Vinha em sua direção. Era um homem. E se fosse bonito, adeus, boa esposa! Quando a imagem ganhou definição, a poucos metros de seus incrédulos olhos, um novo choque: um sorriso imenso e familiar, camiseta e jeans surrados e a barba por fazer.
Era ele! Não o provável amante, mas o marido, seu marceneiro a lhe fazer uma surpresa. A primeira em tantos anos juntos. Depois do beijo com gosto de culpa e saudade, soube que decidira por uma folga e dera uma “incerta”. Só não confessou que a passagem fora comprada graças ao empréstimo de uma cliente, a italiana. Ela não entenderia.