Presentes durante os momentos de interação das crianças, atritos, brigas, competições estimulam a aprendizagem das regras de convívio social .Assim, podemos dizer de forma bem simples que aquilo que aprendemos na infância irá nos influenciar na vida adulta e que os nossos padrões de relacionamento têm origem nestas primeiras etapas do desenvolvimento. Leia mais sobre o assunto nos questionamentos feitos para a psicóloga Bernardete Pretto.
AT – Por que é importante que pais e familiares ensinem para as crianças que ninguém pode viver isoladamente?
Psicóloga Bernardete Pretto – Entendo que esta é uma questão primordial no sentido de que os seres humanos são seres de convivência, de contato. Ou seja, desde o momento em que entramos no mundo, estamos na dependência de alguém, de um outro humano que nos acarinhe, nos proteja, nos alimente e cuide daquilo que um bebê necessita e não consegue obter por si só. Sem isso, impossível sobrevivermos. Uma criança que convive em um ambiente saudável, em que lhe é permitido manter contatos com variadas pessoas, busca por si só novos relacionamentos. Ouvi muitas vezes pessoas de idade dizerem, sabiamente, que criança precisa de criança. E isso é uma grande verdade. Atritos, brigas, competições estão presentes durante os momentos de interação das crianças, mas é através deles que se dá a aprendizagem das regras de convívio social. Então, privar a criança disso é impossibilitá-la de constituir-se plenamente como ser humano.
AT – Em que medida fazer os filhos entenderem que precisamos nos relacionar com pessoas diferentes e seguir regras sociais pode ser visto como um desafio, se considerarmos que vivemos uma era tão individualista e com famílias cada vez menores?
Bernardete – É justamente esta constatação que tem levado pesquisadores das mais diversas áreas a desenvolverem estudos abordando a necessidade de voltarmos a dar importância à convivência, ao respeito pelos outros e pelas regras sociais. Penso que a questão do individualismo está apoiada em interesses que vão além da nossa compreensão imediata, pois reforça a competitividade, o consumismo, o senso de proteção, ao mesmo tempo em que gera a solidão, sentimentos depressivos, pânico, paranoias. Percebe-se que as pessoas têm adoecido em função da solidão, do sentimento de desamparo, e que as doenças psíquicas decorrentes de carências afetivas têm se manifestado cada vez mais cedo. Assim, concordo que é um grande desafio para todos nós, adultos, buscarmos romper com a lógica individualista. O fato de, na atualidade, as famílias serem menores não pode servir como justificativa para que criemos espaços restritos de convivência para as crianças. Na verdade, trata-se de buscar outras alternativas, ampliando o conceito e a forma de conviver em família, rompendo com as barreiras que nos separam dos outros. Falo nisto porque também hoje vemos as casas sendo cercadas por muros cada vez mais altos, as escolas cada vez mais “protegidas”, o espaço público cada vez mais vigiado. Se não estivermos atentos a isso e fazendo movimentos contrários, corremos o risco de deixar a nossos filhos um mundo tal qual o famoso “Big Brother”.
AT – Qual a importância de estimular as crianças a participarem de brincadeiras e trabalhos em grupo?
Bernardete – A brincadeira em grupo é a forma principal de inserção da criança no mundo. É também a base para a compreensão e participação dela nas regras de convivência. A cada etapa do desenvolvimento da criança corresponde uma forma de ela se relacionar com o grupo. Ou seja, crianças pequenas têm um pensamento e uma forma de agir chamadas de egocêntricas, entendendo ainda suas necessidades como únicas e, portanto, demonstram certa dificuldade em aceitar regras estabelecidas por outros. Porém, à medida em que são estimuladas a conviver e que amadurecem tanto física como psiquicamente, vão incorporando estas regras, que permanecem como modelos para toda a vida. Assim, podemos dizer de forma bem simples que aquilo que aprendemos na infância irá nos influenciar na vida adulta e que os nossos padrões de relacionamento têm origem nestas primeiras etapas do desenvolvimento. Sabe-se que pessoas que tiveram, na infância, experiências positivas de convívio, mantêm consigo, internamente, sentimentos positivos em relação aos outros, são mais solidárias e alegres.
AT- É correto pensar que se não houver interação social a saúde do ser humano como um todo pode ser prejudicada? Em que medida?
Bernardete – Sim, podemos afirmar com certeza que a falta de interação social prejudica a saúde das pessoas, se entendermos o conceito de saúde como um conceito amplo, que não diz respeito somente à saúde física, à saúde do corpo, mas também à saúde psíquica, à saúde da mente. Pessoas que foram privadas de interações sociais positivas tendem a desenvolver comportamentos estranhos, mostram-se muitas vezes arredias e têm uma visão ruim das outras pessoas. Crianças, especificamente, podem inclusive apresentar problemas sérios em termos de desenvolvimento físico e cognitivo. Podem tornar-se deprimidas, agressivas ou desenvolverem muitos quadros de doenças físicas. Em casos extremos, em que a criança é totalmente carente e isolada afetivamente, pode-se apresentar com o decorrer do tempo um quadro de psicopatia ou de comportamento antissocial. De outro ponto de vista, podemos pensar que o isolamento social em que vivemos pode contribuir para que criemos futuros adultos egoístas, onipotentes e nada solidários. Este seria um grande risco para a sociedade como um todo.
AT – Que exemplos do dia a dia podem ser usados pelos pais para reforçar a importância de uma interação social saudável, que respeite as mais diversas diferenças?
Bernardete – Penso que no nosso dia a dia contamos com inúmeras oportunidades para desenvolver o respeito às diferenças. Começando pelo próprio ambiente familiar, podemos desde cedo mostrar à criança, através do nosso exemplo, atitudes de tolerância para com o outro e suas próprias vontades, interesses. Por exemplo, se os pais relacionam-se respeitosamente, vão ensinar a criança a dividir, a esperar sua vez para falar, para assistir o programa de televisão que quer ver, para suportar não ser atendida imediatamente em suas vontades, etc. Isso acontece naturalmente nas famílias que possuem padrões positivos de convivência. Saindo de casa, é possível ver, a todo momento, situações que podem ensinar algo. Não é necessário criar momentos especiais para que a criança aprenda a conviver, basta somente estarmos atentos às nossas atitudes e às atitudes alheias. Começando por: Enquanto adulto, consigo respeitar o espaço que é público? Sei conviver socialmente ou discrimino pessoas que são diferentes? Costumo ser agressivo, intolerante nas situações que me afetam? Contribuo com um mundo mais humano? Sei ouvir o outro? Admito que aprendo com meus erros? Sou educado, gentil?… Enfim, acredito que realmente precisamos nos dar conta de que é nosso exemplo enquanto adultos o maior espelho para refletir as ações das crianças.