Duas batidas secas na porta. Por que não haviam usado a campainha? Espiou pela janela, e viu Fred Astaire, o cachorro magrelo, sem raça definida, que adorava correr e, em seguida, deslizar no piso vitrificado da cozinha. Parecia um dançarino, diziam os filhos. Daí o apelido. Irritava-se com essa sensibilidade auditiva. Ouvia tudo, “ouvido de violinista” brincava o marido que, no passar dos anos, consultava a esposa para ouvir sons estranhos no carro e, melhor, localizá-los com absoluta precisão. Sim, ela escutava tudo o que a grande maioria não percebia. As crianças cochichavam alguma brincadeira secreta e ela já sabia se era coisa perigosa ou se podia liberar, sem riscos. Não gostava disso, porque, muitas vezes, a fofoca das falsas amigas, algumas combinações suspeitas entre senhoras e senhores casados, lhe deixavam literalmente perturbada. E sofria com isso.
No mês passado foi ao médico para exames de rotina. Lá encontrou duas conhecidas que, no silêncio absoluto do consultório, passaram a sussurrar alguma coisa muito séria, pois mantinham a testa franzida naquele jeito de quem se refere a algum tema grave. Sem fazer nenhuma força, ouviu o que diziam: “Será que ela já sabe? Pobrezinha, tão querida, tão leal e ele saindo com outra. Foram vistos juntos no mesmo carro, sumiram em direção ao interior. E mais de uma vez!” É claro que precisava saber quem era. Fofoca pela metade não tem a menor graça. E foi assim que ouviu o nome de seu marido. Era ele o sujeito que carregara, mais de uma vez, uma estranha no carro da família, para lugar incerto na zona rural.
Chegou em casa arrasada. Pesquisou e não descobriu nenhum motel no caminho. Os encontros eram então na casa da tal mulher. Sofreu como nunca, desejou ser surda para não ouvir coisas tão horríveis. O marido chegou e ela não o ouviu abrir a porta. Estava cega e surda de mágoa. Pensou no que dizer. Mas dizer o quê? E se fosse outro, com o mesmo nome, o mesmo carro? Não resistiu e procurou uma daquelas senhoras. E foi o que bastou para seu mundo desabar. Elas haviam realmente visto seu marido entrando e saindo do banco onde tinham conta conjunta, com a mesma mulher, mas em outro carro. Ele que sempre fora parceiro, fiel e apaixonado. Com outra?
As finanças eram administradas pelo marido, mas o momento era de urgência e foi conferir o saldo. Notou que uma quantia superior a pouco mais de R$ 1 mil havia sido sacada. Era o preço da orgia! Chegou em casa mais arrasada do que furiosa. Não podia acreditar naquilo. Pior, abriu a porta e ouviu o marido a segredar: “Ela está chegando, preciso desligar!”. Quase desmaiou. Mas manteve-se firme. Quando a avistou disse, em tom sério: “Vamos conversar”. Ela tremeu. “Vai dizer que está com outra”, pensou enquanto percebeu que ele levava em uma das mãos um chaveiro bem antigo. “Ele já está na casa da vadia”, concluiu.
Ele foi até a mesa da sala e abriu uma pasta. “Quer propor divórcio. É advogado, vai tentar me tirar tudo. Isso nunca!” No mesmo tom calmo e em voz baixa, porque sabia da audição perfeita da esposa, juntou as chaves com os papéis e disse: “Te devolvo algo que sempre te pertenceu”. E aí ela não entendeu mais nada até recuperar a concentração e perceber que ele lhe entregava um contrato de compra de imóvel. Em resumo, adquirira a casa onde ela passara a infância e que havia sido vendida para saldar dívidas do pai. Era um presente! E a moça, aquela dos comentários, a corretora de imóveis. O dinheiro, pagamento de impostos. Sentiu muita vergonha, chorou duplamente emocionada, abraçada ao marido.
E guardou a lição de que melhor do que ouvir bem tudo que o se diz ao redor, é saber discernir entre o que realmente agrega e a fala destilada por quem ouve muito bem, enxerga melhor ainda, mas pinta a realidade com a cor opaca de sua própria mediocridade. Por via das dúvidas, para evitar novos sustos, ela usa o fone do celular para ouvir música e filtrar a poluição verbal. Aprendeu que a voz da intuição é mais efetiva no caminho da verdade.