Nós nunca trocamos versos, nem mesmo olhares furtivos. Tudo muito simples, tudo na base da parceria amiga. Não passeamos de mãos dadas feito bobos, nem rimos sem que ninguém entendesse a graça. Porque a graça é secreta. Transparente feito bola de sabão, mas somente os amantes a interpretam. Como não somos amantes, não há fantasia. Nunca saímos a comer pipoca no cinema. Nem roubei beijos – cobrindo a visão de quem senta bem atrás – na hora em que o crime se elucidaria na tela colorida. Não fomos esse tipo de gente chata, de paixão exibicionista.
E os restaurantes? Comida italiana, bacalhau à portuguesa, pratos refinados franceses ou a exótica e sensual comida tailandesa? Passaram batidos, por nós. Muito menos o cachorro-quente do Bigode, na galeria do Rosário, ou qualquer cheesburger mata-fome de quando bate a larica por coisas gordurosas e fritas, acompanhadas, é lógico, de um refri litro normal (que não é caloria zero).
Eu lembro que um dia chegamos a comentar essa coisa de Dia dos Namorados. Invenção de publicitários. Oportunismo cínico. Afinal, qual santo seria o mais casamenteiro? São Valentim ou Santo Antônio? Não entramos nessa disputa. Os santos não nos davam muita inspiração, nem uma dica tipo, “vai lá é essa aí!” Faltaria fé?
Eu não te comprei presentes, nem uma flor sequer! Nem me destes aquela gravata bacana que, juntos, vimos em uma vitrine de shopping. Não éramos namorados. Bons amigos apenas sugerem coisas que te deixariam bem vestido. Despir então? Jamais! Sai pra lá, que tu é minha amiga, eu teu conselheiro.
Assim, nunca nos abraçamos daquele jeito que tonteia e deixa os sentidos em níveis intoleráveis que nos tiram – em segundos – a razão. Sempre fomos dois bichos racionais! Tu me relatavas se o na-morado da vez era ousado, ou careta demais. Ou se esquecia datas importantes e ainda deixava as cuecas emboladas no banheiro. Até teu pai viu. E censurou. Eu falava das manias das mulheres que gostavam disso e daquilo, que pediam para ligar para casa a toda hora. Divorciadas com filhos, vivem cheias de culpas.
Nunca fomos à Bahia, pagando tudo em 12 vezes no cartão de crédito. Não fizemos planos de subir a Torre Eiffel e lá, jurarmos amor eterno. Éramos parceiros de seminários, congressos. Reuniões intermináveis, que formavam comissões, definiam grupos e perdiam o propósito meses depois.
Parceria mesmo era na hora da dor de corno. Quantas traições confidenciadas? Muito menos do que as bolachas de chope que o garçom contabilizava a cada crise, é claro. Mas aliviávamos o sofrimento, montávamos planos fantásticos de vingança que, invariavelmente, evaporavam junto a ressaca no dia seguinte.
Quem ama não é rancoroso. Sofre calado. E amávamos demais! Tanto que selecionávamos muito. Selecionávamos ao extremo. Nem eram questões físicas, mas o caráter, a capacidade de doação. E a seleção é prima-irmã do solitário.
A maioria de nossas paixões evaporava em pouco tempo. Pior era ouvir sempre as mesmas desculpas secas, ou sem nexo de quem nos abandonava. Aquela coisa de que estava tudo bem, mas ainda não estavam prontos para essa etapa. Como alguém pode não estar pronto para algo que diz ser bom/ Ser bom é ruim? Ah! Contradições. Deveria ter um Manual Criativo do Pé na Bunda!
É claro, voltávamos às confissões regadas a chope. Sem choro, porque o tempo nos levara ao hábito do adeus. Era tanto pedido, de “vamos dar um tempo”, que os romances mais pareciam uma queda no vácuo. O certo é que estamos aqui outra vez. Eu e tu, minha amiga. Sabemos tanto um do outro, que até parece lógica a proposta que me apresentas hoje, de ficarmos juntos como namorados, só para avaliar se é possível uma tentativa de algo além desta bela amizade.
Até porque já estamos engordando – quase alcoolistas – de tanto chope com fritas. Eu topo. Se der certo, vamos adiante. Se surgirem problemas, retomamos a antiga condição de confidentes e discutimos a relação. Sabemos cada detalhe, cada arapuca que montamos contra nós mesmos. Tanto tempo para se chegar à conclusão de qualquer livro de autoajuda de que uma boa relação precisa de amor e amizade. Sei não. Mas achei bacana a frase dela: “Vamos servir de cobaia das nossas próprias carências. Passando a fome de estima, já está bom”. Nada científico, mas muito excitante.