Ela se preocupava com detalhes e limpeza. Vivia no apartamento típico de revista de decoração. Mas do que valia sem namoro no sofá ultra-aspirado? Rolar sem espirros nos tapetes a prova de ácaros. E os lençóis? Alvíssimos, macios, cheirando a limpeza. Os namorados seguiam rigorosamente o mesmo perfil: gostavam de organização. Nos primeiros dias, as coisas sempre iam bem. Até a hora dos palpites sobre marcas e métodos de faxina. Quem sonha com a perfeição é conservador. Como aceitar a dica do novo amor sem estresse? Era assim que com decepcionante frequência, suas paixões escoavam pelos ralos polidos.
Deles permaneciam livros, teses e longos papos na madrugada que muitas vezes haviam culminado em excitantes discursos intelectuais. Os do tipo gourmet sofriam mais, precisavam estar atentos as receitas e a limpeza da cozinha. Ela ajudava, mas volta e meia, eram tão precisos e previsíveis que tudo acabava feito fricassé de vernissage. Insosso demais. Lá ficava ela, sozinha outra vez, saudosa do amor entre ervas finas, especiarias e detergentes. Deles, permaneciam manchas, ou algo assim. Alguns, além de arranhar o piso, marcavam com fissuras aquele organizado coração.
Sabia que ao entrar na maturidade escrava de suas teses, presa a longos debates consigo mesma, poderia sentenciar-se a uma solidão involuntária. Queria fazer enxoval. Lençóis novos, pijamas de algodão. Foi aí que surgiu aquele quarentão, divorciado e independente. No catálogo de deuses gregos, classificava-se na categoria de um Baco. Bochechudo e simpático. Habituada a poliglotas, insistia com provocações eruditas em alemão! Tudo que ele sabia do idioma de Goethe era a ressaca horrível de um antigo Liebfraumilch, vinho branco frutado e enganador que o seduzira tantas vezes na juventude.
Eram opostos. Mas como toda fêmea, achou que o moldaria. Buscava a mais limpa, cheirosa e límpida alma gêmea e caíra na armadilha da simpática imperfeição estética, na sedução do diferente. Quando pensava em reclamar do excesso de farelo, dos pingos de bebida na toalha alva, vinha o beijo carnudo sempre na temperatura ideal.
À noite, tanto amassavam os lençóis passados a vapor que ela chegava a pensar que estariam inutilizados no dia seguinte. Era jogada de lá pra cá, virada do avesso até pedir pelo amor de Deus que parasse. Esperto, jamais obedecia. Quando ia embora, ainda sobrava uma faxina extra a ser feita. Ele era desregrado demais. Moral da história? Com dor, dispensou aquela versão desorganizada de alma gêmea.
No dia seguinte, caprichou na faxina, manchou de lágrimas o lençol que trazia o cheiro vivo e gostoso dele que, por sua vez, insistiu em um último apelo por uma reconciliação. Argumentou que não relaxado, ela que exagerava, sofria de toque, Precisava de tratamento psicológico, Ela permaneceu impassível. “Uma alma gêmea, combina em tudo,” respondeu.
Foi então que ele lembrou de um único poema decorado nos tempos de escola, de Manuel Bandeira. Agora dava valor a poesia. “Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor (…) Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.” E foi embora, a espera de um retorno dela, o qual, sinceramente, não sei se houve. O que vocês acham?