Deixou a porta aberta, como a liberar uma infinita cauda de noiva. Eram 30 anos de vida em comum. A casa estava limpa. Tudo em seu devido lugar, apenas uma camada rala de pó insinuava-se nos móveis muito bem lustrados. Mas é assim mesmo, igual a inevitável ferrugem que atingia um dos pés da geladeira, após anos de panos úmidos nas faxinas de rotina. Envelhecer é isso, refletiu, enquanto cheirava as mãos. Realmente não existe creme hidratante que retire totalmente o cheiro e, pior, o ressecamento provocados pelo cloro. A partir de agora, usaria luvas. A idade avançava, precisava redobrar os cuidados com o corpo.
Observou mais uma vez o tapete alinhado ao sofá, diante da imensa tela 3D, equipamento de fazer o chão tremer em filmes de aventura, ouvir shows como se estivesse no teatro, de pijamas, chinelos velhos e ancorada na barriga que estourava botões. A vida lhe reservara bons momentos, por isso olhava tudo a sua volta com tanto carinho. De repente lembrou que o forno ainda estava ligado. Retirou o assado que cheirava a pecado da gula, o cobriu com filme de alumínio e o repousou no balcão. A salada estava pronta. Gostou daquele toque dona de casa. Empresária, passava a maior parte do dia no trabalho, longe dos afazeres domésticos.
Escolhera o melhor jogo de lençol para o quarto do casal, perfumara com aquelas essências que comprava e sempre esquecia de usar. Tudo cheirava a paz. No quarto dos filhos, que já não moravam mais lá, deixara um porta-retratos com uma foto antiga da família em uma viagem de férias a Nova Iorque. Tempos de pouco dinheiro e muita coragem. Parcelaram o passeio em 24 meses, o que não provocara danos ao orçamento doméstico e ainda os mantivera unidos.
No corredor percebeu que todos os quadros que possuía eram abstratos. Reproduções de Mondrian, Kandinski e artistas brasileiros como Iberê Camargo. Até um trabalho seu inspirado nestes artistas. O marido adorava, ou fingia, em nome do bom convívio a dois. Quem sabe não fora esse abstracionismo, cheio de cores fortes e vivas, o responsável pelo momento que vivia agora?
Retornou à porta de saída. Fotografou tudo com olhos de alguém que some para comprar cigarros e não volta nunca mais. Não era fã de sertanejo, mas lembrou a letra de um reggae – é isso mesmo – da dupla Jorge e Mateus. “Toda história de amor é assim. Tem idas e voltas. Mas tem que ter final feliz. Mesmo sendo escrita por linhas tortas”. Era bem isso que ela vivia naquele momento.
Fechou a porta com cuidado e, conforme combinara com o marido, deixou a chave com o zelador. As passagens de avião estavam na bolsa, junto com o passaporte. Na mala apenas o essencial para uma temporada no exterior.
Voltaria a Nova Iorque. Sozinha. Queria curtir programas que considerava legais. Teatros, cinemas e compras, porque não resistiria à tentação das lojas e ofertas da Big Apple. Sentiu um arrepio, uma súbita euforia. Nada a ver com o inverno, nem tão frio, ou com o café, nem tão forte. A perspectiva do novo, de um momento que jamais cogitara, a excitava.
Imaginava que os carros na rua sinalizavam para ela. Que as pessoas acenavam, “Vai lá, boa sorte!!” Igual a tantas outras vezes onde o sonho fora bem mais vivo do que a realidade construída. Um final feliz! Sem culpas, nem regressos amargos. O abstrato das pinturas coloriram a rotina dos últimos anos, mas a ausência de projetos, transforma o que era um casal, em dois seres solitários. Individualistas.
Viveria essa individualidade então. Em Nova Iorque. Poderia ser na mais humilde cidade do planeta, afinal, só existe uma morada para a felicidade, que é o coração de quem lhe desenhou a trilha.