Era um casal exemplar, um pouco acima da média. Vivia seu mundo à parte, tão distante da nossa fria realidade que seus domínios pareciam estar longe do Rio Grande do Sul problemático, que arrasta uma máquina pública pesada e falida. Quem privava da intimidade deste casal, jurava estar em outro país, não nesta república verde-amarela conduzida entre a gagueira ética e econômica e sua real grandeza.
Quem por ventura fosse conferir suas gavetas, encontraria notas fiscais, taxas pagas sempre em dia, em uma contabilidade que beirava a perfeição. Inacreditável assisti-los imunes aos exemplos ruins onde toda sonegação, especialmente de impostos, é pouco castigada. Aliás, nada entre eles era imposto. Quem ama liberta! Agiam por convicção, por amor à vida e esperança de um país melhor.
A relação fluía tão bem que, alguns vizinhos juravam em nome de tudo que possa ser mais sagrado, que até mesmo os jornais que descartavam diariamente, quando usados para forrar as camas de concreto de andarilhos e moradores de rua, provocam reações divertidas. Alguns largavam seus cachimbos de crack, ou garrafas de aguardentes. Embebidos pela energia bonita, serena, da relação bem cuidada, riam, balbuciavam canções, durante o sono. Acordavam a relatar sonhos felizes.
A vizinhança parecia iluminar-se com o sentimento amoroso daqueles dois. Tanto que a sensação de segurança era uma constante nas redondezas. Alguns chegavam a distrair-se perigosamente, esquecendo portas ou janelas abertas, sem nenhum registro de ocorrência grave. O que mais assustava, era o canto vigoroso e desafinado do vizinho que incorporava, no chuveiro, um ensaboado Pavarotti.
Em uma dessas tardes, não os viram retornar para casa. A noite engoliu a tarde e as luzes do apartamento permaneceram apagadas. No dia seguinte, os jornais não recolhidos na portaria do prédio, alertaram os vizinhos. Eles sempre avisavam sobre viagens a passeios ou negócios. A resposta veio a jato, como todo anúncio ruim. Haviam sofrido um sequestro ao sair do supermercado.
Ao fugir, os bandidos bateram com o veículo. Conseguiram escapar com vida. Mas incendiaram o carro – para evitar que fossem reconhecidos – deixando o casal preso ao porta-malas. Morreram asfixiados pela fumaça e principalmente, pela impunidade que escapuliu livre pela rua deserta em um bairro distante da cidade.
Dias depois, os mendigos da rua, dormiam sobre as manchetes de mais uma tragédia provocada pela violência urbana. O pesadelo cotidiano os assombrou na madrugada fria. Gritaram de medo, vítimas da impotência que calou a cantoria no chuveiro e a alegria de quem constrói a vida em harmonia. No final do túnel, alguém roubou a lâmpada.

