Sempre havia uma tonelada de trabalho a concluir. Redatora, articulista, filósofa e mulher em alto estilo 24 horas embora não vestisse Prada, circulava como a reencarnação intelectualizada de Lady Di. Piscou os olhos na tentativa de ver aqueles ofícios e relatórios milagrosamente transformados em diamantes lapidados, bolsas e sapatos italianos Alberto Gozzi ou Mário Valentino. Chiquéssimos! Que nada! O neurótico soar do telefone a reconduziu a uma realidade sem charme: um dos tantos coordenadores lhe cobrava os textos encomendados.
Escrava das tarefas perfeitas tornara-se uma espécie de objeto de desejo da grande maioria e de invejoso desprezo de outra turma que insistia em relegá-la a um segundo plano. Volta e meia, a escondiam em um canto obscuro do escritório. O isolamento não durava muito. Quem a admirava por seus dotes de fina elegância a localizavam pelo perfume. Quem simplesmente respeitava a eficiência profissional a buscava através do whatsapp, a repassar, invariavelmente tarefas mal cumpridas por outrem.
As secretárias a baniam escancaradamente. Discreta, seduzia as chefias – fossem homens ou mulheres – com a sensibilidade de quem fareja fraquezas e reforçava a vaidade destes com adjetivos calculados. Nas gavetas, sempre havia algum artigo de próprio punho. Mulher de opinião, que obrigava os outros a vasculharem dicionários com seus textos enxutos e criativos, onde palavras como “devir”, a distinguia na linha de frente da empresa. Aos técnicos postados como intelectuais, surpreendia em longos debates.
Atravessava a barreira intransponível dos gabinetes conquistando o número pessoal de lideranças mulheres e especialmente homens. Promovia um jogo sedutor que iniciava em temas de alto teor social ou cultural e fatalmente, resvalava na intimidade de confissões pessoais. Filhos, casamentos, alegrias e frustrações. Era confidente e amiga. O olhar pleno em admiração encantava mesmo velhas raposas, líderes de grande sabedoria política. Claro que, ao conquistar espaços, alimentava as vorazes línguas da fofoca. Habituara-se a isso. Qual o problema de aliar o talento profissional ao charme?
Na verdade, a arte desse jogo atrapalhou na percepção de que sua competência para executar qualquer tarefa com perfeição, dispensaria tanta encenação. Mulheres vencedoras enfrentam o cordão de isolamento do preconceito, do abuso e do assédio deslavado. Se de um lado conquista chefias, o ressentimento que citei acima cresce a cada nova conquista. As próprias colegas mulheres passaram a excluí-la das listas de presente nos aniversários dos chefes, do chopinho com a turma, dos almoços coletivos. Os homens a incluíam em sugestões plurais, livros teóricos e drinques no inferno.
Dia desses cruzei com essa mulher. Tensa, revoltada com o salário encolhido e sem tempo para férias. Ao mesmo tempo, reclamava das “secretárias para todo tipo de serviço”, bronzeadas e faltando impunemente ao trabalho. Ganhavam pouco, mas conquistavam vantagens “extras”, tipo caronas especiais, jantares em locais interessantes e mimosos presentes. “Na próxima geração vou nascer assim, burra, mas sabendo usar a estampa para viver melhor. Não tem lugar para mulher séria nesse mundo”, esbravejou. E pensei nestes dois universos femininos tão distintos e, ao mesmo tempo, prisioneiros de preconceitos idênticos.
Há um grande fosso para a total independência feminina. Entre a gueixa e a mulher independente, muitos ainda escolhem a gueixa. Caras e bocas ainda integram o currículo de muitas mulheres de notória competência profissional. Médicas, secretárias, funcionárias públicas de alto nível, acabam muitas vezes tratadas feito cinderelas modernas que, para não terem sonhos de realização transformados em carros de abóboras, se veem obrigadas a transformar ratos em príncipes, cujo encantamento não reside em seu próprio valor, mas na caneta que assina promoções e vantagens profissionais.