Coloquei outra vez na cabeceira o livro “Afrodite, Contos, Receitas e outros afrodisíacos” da chilena Isabel Allende. É tanta notícia ruim, tanta crise, tanta descrença em meio a este período eleitoral que sequer parei – e acredito que muitos fizeram o mesmo – para reparar na sutil mudança do tempo. Os frios mais amenos, o perfume, a cor e as manhãs mais claras. A primavera que inicia nesta sexta-feira é a estação do amor. Porto Alegre com suas árvores me permite esse relaxamento, em meio ao caos de segurança que se tornou. E de alguma maneira, abre o apetite de cardápios mais exóticos.
E os casais? Essas duplas (às vezes complicados trios) que, enrolados tratos sociais acabam perdidos, sem fôlego, assustados. Ai, ai. Quão vicioso é o ciclo da vida. Sabem o que escritora chilena recomenda? Prazer. Carinhos, ternura, sensualidade. Fantasia. Allende diz que não se deve rejeitar nada por vaidade. Fazer amor ainda vale a pena? “Mas ele está tão abatido. Eu então? Nem me atrevo a encarar o espelho”, pensará a mulher já na idade madura. Esquece a força que carrega em si, o poder de transformação da fantasia amorosa.
“Arrependo-me dos pratos deliciosos rejeitados por vaidade, tanto como lamento as oportunidades de fazer amor que deixei passar para me dedicar a tarefas pendentes ou por virtude puritana”, já que “a sexualidade é um componente da boa saúde, inspira a criação e é parte do caminho da alma… Infelizmente, demorei trinta anos para descobrir isto”, escreveu Allende. Cada história de amor, tem sua própria receita, sua bebida especial. O que não pode acontecer é a taça secar e o cardápio repetir-se, sem graça,
Impossível escapar dessa fase? Então quebremos as rotinas. As loucas terapias do tédio, os compromissos assumidos em nome do sei lá o que e que simplesmente engarrafam os sentimentos e transformam em transgressão o amor maior. Cada um tem seu jeito de ser. Cada um é uma aventura a ser iniciada. A violência das cidades, a falta de educação, de cultura, de valores éticos que assusta nas pessoas que nos cercam, simplesmente não mudarão de uma hora para outra. A atitude de cada um é o que pode tornar o todo melhor.
Quem dera chegar ao patamar da existência sem rugas, sem rusgas, sem calmantes ou terapias. Só que não é assim. E o fato de estarmos cercados de compromissos, de filhos, netos ou amigos no clube ou trabalho, não significa que não possamos reservar um instante íntimo e transformador. Façamos o nosso próprio tempo e a primavera tem essa mágica. Prepare o espírito para o verão, às vezes rude, de calor devastador, especialmente nas cidades de concreto e asfalto.
Um setembro e outubro bem aproveitados nos deixam mais tolerantes ao calor, mais próximos das folgas, dos cardápios amenos, mas igualmente deliciosos. Tempo dos happy hours, das noites quentes, mas felizes. Sair do feijão com arroz do cotidiano é o que propõe Allende – que na época – vivera três anos de prostração após a morte de uma filha.
A mistura entre a cozinha e o quarto dos casais, já rendeu vários temas, livros, poemas e filmes. Mas a chilena Allende ainda é imbatível e sedutora. Toda receita à mesa, de certa maneira, têm um ritual semelhante ao do amor. Parte de uma receita, passa pela seleção de ingredientes e define a entrada, o prato principal e a delícia doce da sobremesa. Após tudo isso, é a digestão, a sonolência em paz que vinga a insensatez do cotidiano, nesses dias e noites de primavera.