Marcão tinha o perfil de uma expressiva maioria dos eleitores brasileiros – branco, nulo e decepcionado – não era uma insatisfação assim, avassaladora que o determinasse a juntar-se a um grupo black bloc ou MBL. Nunca se reconhecera anarquista ou reacionário. Extremista jamais! Mas era tanta sujeira oculta que, de repente, decidira chutar o balde e fazer lá seu protesto. Os jornais desfilam políticos nefastas, esdrúxulos e personalistas em sua arrogância ou em uma humildade artificial. Marcão, morador do bairro Menino Deus, em Porto Alegre, queria uma revolução sem armas, sem violência. Algo assim como fazer uma omelete sem ovos, diriam os parceiros incréus. Mas ele acreditava em decisões pacíficas, no diálogo.
Voltou para casa decidido a mudar rumos, sem pichações, sem ocupações, sem aquelas músicas grudentas de candidaturas. Não seria convencido pelo marketing verborrágico! Mal entrou em casa e a esposa o observou com um olhar de indagação. “Oi!” saudou antes de retornar à cozinha, onde concluía uma receita especial. Entre camarões, legumes refogados ao bafo, observou a mulher bonita, com alguns deliciosos quilos a mais e uma capacidade incrível de comunicação. Tinha amigos por todos os lados, era líder em associações comunitárias e só não participava de clubes de serviço, tipo Rotary e Lions, por falta de tempo para reuniões semanais. Agora estava ali preparando um almoço especial no dia da votação em segundo turno.
O prato estava delicioso, à tarde seguiu com muito sol e chimarrão na sacada do prédio e antes de dormir, ainda namoraram à moda dos primeiros anos de casamento. Oito anos! Eram senadores da vida conjugal brincava ele. A segunda-feira veio tranquila. Porto Alegre tinha prefeito novo, mas o número de abstenções, votos em branco e nulos fora maior que a votação que o elegera com 402.165 votos, a soma dos votos brancos (46.537), nulos (109.693) e das abstenções (277.521) fora de 433.751. Cidadãos cansados das administrações que rasgavam promessas, parlamentares que mentiam, subtraíam, mantinham contas milionárias em paraísos fiscais e o resto do povo no inferno dos bancos em juros estratosféricos.
Bateu-lhe aquele arrepio. Aquela sensação de que nesta segunda-feira eu vou tomar uma decisão definitiva. Marcão que anulara o voto, não por ideologia, mas por descrédito nas instituições percebeu que em alguns momentos, era fundamental tomar partido. Olhou o pequeno, mas acolhedor apartamento e percebeu que ali estava escrita uma história com um final que precisa muito ser feliz. Que dependia de um projeto único, de uma história comum e de votos de parceria e fidelidade. No quarto, a foto do casal na viagem a Paris, era a propaganda autorizada de uma relação nascida em projetos apaixonados que reuniam amigos, familiares e uma conta conjunta para viagens como aquela.
Saiu para o trabalho da mesma maneira que fazia todos os dias. A esposa saíra antes, sempre tinha compromissos de agenda nas primeiras horas da manhã. À noite, a convidou para um happy hour e disse que encerrava ali a história deles. Não queria bancar um tipo de juiz, tipo o Moro, mas as denúncias comprovadas, de que encontros fortuitos transformavam o cotidiano deles em uma farsa.
Ela contestou, chorou, negou tudo feito político pego com a boca na botija (sem duplo sentido, leitores, mas fora mais ou menos isso). Se é para moralizar que comece em casa o exemplo. Marcão jurou que a partir de agora, toda relação será aberta, para evitar sofrimentos. Eu duvido. Construir alianças questionáveis é o erro maior. Mas ele aprenderá.