Agora, neste exato momento, eu poderia estar sentado à beira do caminho. Triste. Virando uma página em branco, urso acordando da hibernação, abraçado no travesseiro da culpa. Poderia caprichar em um post desolado nas redes sociais, perdido em autopiedade. Eu, fiador de tantos sonhos, tantas fantasias, sempre com a estranha mania de pagar pela incapacidade de dizer não. Eu, a rugir uma fome que nunca sacia. Não sou assim, prefiro buscar novos ingredientes e acertar a mão na comilança da felicidade.
Bem que poderia chorar a incerteza do amanhã. Consolar-me com as mãos que se oferecem a uma carícia nunca totalmente gratuita. Em tempos de crise, vejo amigos arrastando ideologias, como quem acende velas ao vento. Incorporam discursos – direita e esquerda – tão distantes e tão próximos em suas bandeiras desfraldadas a ocultar a miséria das ruas, a ignorância.
Eu poderia assumir uma dessas bandeiras. Quem sabe arrepender-me das propostas que recusei, das virtudes que neguei. E àqueles que me insultaram quando ousaram me medir com a régua rasa da sua própria mediocridade, bem que poderia ter-lhes respondido com o melhor de meu sarcasmo e neutralizar a humilhação imposta. Mas estes, eu os vejo solitários em sua trajetória anacrônica, mendigos de perspectivas.
Diante do espelho percebo que a dieta não engrena. Cuida-te, gordinho! Diante de tudo que acontece a minha volta, nem sei se terei trabalho na virada de ano. Meu advogado negocia o pagamento de uma dívida que afiancei. Vejam! Eu ainda sou o tipo que assina fianças! Mais uma vez, a decisão tomada pelo vil coração é assaltada pela crueza da realidade. Lição anotada.
Sim, eu poderia levar o urso de volta ao sono de um inverno que está de partida. Quem sabe soterrar a razão no fundo da mina abandonada e não voltar mais. Não me salvem! Mas tudo é muito maior. A atenção de um amigo na hora difícil, o amor macio de minha amada. A família doida de atar, mas sempre presente. Café com leite, feijão com arroz e aquela almôndega tão macia que somente a mãe sabe fazer. É isso que importa.
As madrugadas com seus fantasmas, afasto com um copa d’água e uma respirada funda do ar gelado do alvorecer. Em seguida, o café coado é a primeira lição de que muitas coisas sempre serão mais perfumadas do que gostosas. E assim se leva a vida. E a quero muito. Preciso cozinhar ainda para muitos outros bons amigos. Alguns tão próximos, outros mais distantes, mas todos sempre bem-vindos a minha maturidade.