Quando saí de Arroio do Meio para morar em Porto Alegre – há 42 anos – fui morar com um grupo de amigos, todos conterrâneos. Alguns estavam há muitos anos na cidade grande, como os irmãos Miguel e Vicente Petry. Morávamos num apartamento cujo assoalho lembrava um queijo, graças ao apetite insaciável da colônia de cupins que habitava o imóvel.
O apartamento ficava na Rua Comendador Azevedo, quase equina com a Avenida Farrapos, ao lado da mítica casa noturna Gruta Azul. São detalhes que enfatizo para comprovar que as noites eram agitadas, muito diferentes do que ocorria em solo arroio-meense. As esquinas eram habitadas por moças que… digamos… “prestavam favores mediante pagamento”.
Era um apartamento antigo, sem vizinhos porque ficava sobre um armazém onde o proprietário sofria de insônia. Isto era confortável para a maioria dos habitantes da “República do Arroio do Meio”. Eles gostavam de esticar as noites regadas a generosas garrafas de Brahma e Antarctica, uma das poucas alternativas de cerveja na época. Eu, na época, não bebia.
Para repor o estoque bastava desamarrar um fio do varal, atar um balde plástico onde eram acondicionados os “cascos” – ou vasilhames. O balde pendia para se chocar contra a janela. Assim, o bodegueiro recolhia o balde, acomodava as garrafas cheias e geladas. A senha de que estava “tudo ok” era o puxão no fio. No fim do mês, o famoso caderninho ganhava protagonismo e a “vaquinha do apê” quitava o débito, zerando a conta.
Fui motivo de chacota por uma semana, mas com
fama de gozador “aguentei no osso do peito”
Eram oito “barbados” distribuídos em dois quartos, cada um com dois beliches. Eu, como sempre, acordava com o dia ainda escuro. Com pouco espaço, acomodava os calçados sob a cama. Ao despertar e para não perturbar os parceiros evitava acender a luz. A roupa era separada na noite anterior.
Certo dia, depois dos procedimentos de praxe, peguei o ônibus para ir a Olvebra, empresa localizada na Rua Pinto Bandeira, onde trabalhava como auxiliar do departamento de pessoal. Eram quase 8h da manhã quando, espremido no elevador lotado – é um prédio com mais de 20 andares – resolvi olhar para baixo.
Quase desmaiei ao constatar que calçava um sapato marrom de bico fino no pé esquerdo e outro, preto e de ponta arredondada, no pé direito. Bati o ponto, avisei meus colegas e expliquei os motivos. Voltei para casa e refiz o par de calçados.
O dia do incidente transcorreu normalmente e até já tinha esquecido o episódio. Mas, no final do mês, o implacável jornalzinho da empresa estampava uma charge com dois sapatos diferentes, um grande, outro enorme, para satirizar minha desatenção. Ao lado do desenho, um resumo da história. Virei motivo de chacota por uma semana, mas com fama de gozador “aguentei no osso do peito”.
Há duas semanas a troca de sapatos se repetiu. Minha atenuante é que ambos os pés eram da cor preta. Notei ao engraxar o par, uma das minhas obsessões. Desta vez não contei para ninguém. Afinal, já sofri muito bullying como Dumbo, graças às orelhas de abano…