Uma taça de vinho, um pote com frutas picadas e chocolate em lascas. Sentia o inverno a encobrir o outono e imaginou que assim enfrentaria melhor o frio. Abriu as janelas, o sol nosso de cada dia seria mais raro a partir de agora. Precisava aproveitar todas as horas de luz. Lá vinha aquele sentimento amargo-doce, igual aos petiscos na mesa que dividiam espaço com um vaso sem flores. Volta e meia percebia uma leve melancolia. Aí ligava para as amigas. Queria assunto. Sempre alguém sugere algum tipo de programa, em alguma cidadezinha na Serra ou shopping em Porto Alegre.
Mas nesses períodos preferia fugir da óbvia rotina das estações. Um amigo lhe havia sugerido um curso, online e gratuito, com abordagem metafísica que a distrairia com especulações filosóficas, “vais compreender melhor o relógio existencial que aparentemente trava o tempo em dias frios”, empolgava-se o amigo.
Na verdade, o que realmente a incomodava nessa época de roupas, pães e caldos era recordar o marido. Ambos amavam uma sopinha de capeletti enquanto assistiam alguma série na TV, para depois, incentivados pelo vinho, abrir algum tipo de discussão filosófica que, fatalmente era selada com beijos. Por exemplo, contestavam as ideias do pensador alemão Arthur Schopenhauer que, em seu pessimismo, reduzia o ser humano aos mais básicos instintos.
Mas infelizmente, seu parceiro morrera em um estúpido acidente de trânsito. Não tiveram filhos e as memórias eram suas únicas parceiras nessas horas. Lembrava aquela tarde fatal. Descera do carro, segundos antes, para assistir a uma camionete desgovernada, dirigida por um motorista embriagado, encurtar sua melhor experiência de vida a dois. Haviam se passado cinco anos. E somente agora sentia-se atraída por alguém.
Foi algo assim, sem intenção. Ela pedira um café expresso e lhe serviram um cremoso capuccino. Na mesa ao lado, um senhor recebia o seu expresso. Desfeita a confusão, foi elogiada por estar lendo poesia em pleno século 21. A conversa durou alguns minutos ali, outros tantos, via Whatsapp e, nos dias seguintes, alguma prosa em cafeterias. Nesses tímidos e fracionados encontros, souberam o suficiente sobre suas vidas para afastar qualquer risco.
Solitários, ele com filhos, ela com lembranças. Equilibrados, bem resolvidos e quem sabe prontos para algo novo. Mesmo assim, fazia já uma semana que não atendia as ligações dele. E o medo de uma nova trágica perda? Estava satisfeita, ou melhor, conformada com seu destino. No frio, um bom edredom lhe aquecia o corpo. Ponto final! Mas ao levar a taça aos lábios – para o primeiro gole do vinho citado na abertura deste texto – ouviu o toque curto na campainha.
Não esperava ninguém muito menos ele que, mesmo assim, educadamente, pediu para entrar. A sala do pequeno apartamento, em tons pastéis, reduziu-se a uma concha apertadinha depois daquele primeiro beijo macio, mas intenso. Às suas costas ouviu o ruído de papel celofane amassando-se. Enquanto a abraçava colocava, com rara habilidade, um botão vermelho de rosa naquele vaso solitário, aliás, presente do falecido esposo.
Naquele final de semana, não teve passeio com as amigas, nem qualquer proposição metafísica. Até Aristóteles concordaria que a relação entre mente e matéria, estava muito bem resolvida a partir daquele momento. No sábado seguinte, houve o anúncio oficial do namoro. Que festejou o amargo-doce outonal, sem questionar o certo ou errado, ou os fundamentos filosóficos da realidade em que vivia.
O rabugento Schopenhauer afirmava, com desdém, que o amor era a compensação da morte. E pela primeira vez, ela concordava com a frase que, em seu caso, ganhava novo sentido, ao ilustrar a situação única que passava a viver. Sem urgência, ou angústia. Apenas um bálsamo de afeto para durar o tempo que fosse necessário.