Neste último carnaval, o pessoal da Portela foi buscar inspiração no livro “Um defeito de cor” de Ana Maria Gonçalves, para criar o samba-enredo da escola.
Apurados os resultados do desfile, a Portela ficou só com o 5º. lugar. Mas, se a repercussão alcançada valesse pontos, a Portela seria hors-concours. Quer dizer, ficaria acima e além de todas as outras escolas. Passaria para uma categoria especial, pelo alvoroço que vem causando.
Acontece que, depois do desfile, todo mundo está falando de “Um defeito de cor”. E com toda a razão! Trata-se de um livro surpreendente em vários sentidos. É um livro pesado. Pesado, por ser um calhamaço de 952 páginas, e pesado por contar uma história impressionante. Quem a conta é Kehinde, uma mulher negra, que rememora sua vida desde que foi capturada no Reino de Daomé, África, para ser escrava no Brasil, quando tinha de seis para sete anos.
O livro mostra a escravidão a partir de dentro. Kehinde, é apanhada para venda com a irmã gêmea. Crianças tão pequenas não eram as presas favoritas. Mas o fato de serem gêmeas chama a atenção. As duas meninas podem ganhar preço ao ser vendidas como um brinquedo interessante. Entre todas as peripécias narradas, destaca-se a venda do filho de Kehinde, feita pelo próprio pai. Depois de conseguir a alforria, Kehinde sai a procurar o filho. Faz isso até a morte, sem jamais vai encontrá-lo.
Não sei o que o pessoal da Portela esperava, além de fazer um belo desfile de carnaval. Às vezes, a gente atira no que vê e acerta no que não vê… O certo é que neste ano a Portela gerou dois fatos importantes.
Primeiro, fez explodir o comércio do livro de Ana Maria Gonçalves e olha que ele já antes vendara mais de cem mil exemplares. A novidade é que desde o dia 12 de fevereiro, data do desfile, o livro esgotou nas livrarias. Informações do Magalu dizem que a procura pela obra cresceu 3.300%. Na lista dos mais vendidos da Amazon, “Um defeito de cor” subiu para o primeiro lugar. Por seu lado, a editora Record começou a rodar nova edição da obra no dia 16 de fevereiro. Ou seja, alvoroço incomum agitou o setor editorial brasileiro.
Segundo fato, o livro e o desfile da Portela trouxeram para a roda das conversas o inesgotável tema do preconceito. A escravidão foi abolida há 136 anos no Brasil. Mas, como herança, ficou o costume de tratar as pessoas de forma desigual. Se você tem memória boa, ainda lembra do mal-estar causado pela obrigatoriedade de estender os direitos trabalhistas para as empregadas domésticas, há cerca de dez anos.
Ao lado disso, vale a pena prestar atenção no título do livro de Ana Maria Magalhães. O título “Um defeito de cor” fala por si. Ele não foi inventado pela autora. A autora simplesmente repete uma expressão corrente no período colonial. Os pretos ou descendentes de pretos que quisessem ser admitidos em cargos importantes tinham de pedir uma licença especial. Eles tinham de ser “inocentados”, por assim dizer, do chamado “defectu coloris”. Ou seja, os negros pediam para ser desconsiderado o fato de carregarem a falha da pele de cor errada.
Acreditar que a cor de pele pode ser um defeito é ou não é um tema para causar alvoroço?