Conhecer o que ainda não conhecemos, pensar o que ainda não tivemos chance de pensar, é um dos jeitos de enriquecer a vida. É um tipo de aventura. Tanto melhor, que dá para fazer isso até o final dos nossos dias e sem necessidade de viajar para longe.
Foi isso que me aconteceu recentemente.
Simplesmente, fui ao cinema para assistir a um filme africano. Pra começar, filme africano é coisa rara. Acho até que nunca tinha visto algum. Um ponto para a novidade, portanto. O filme se passava em Djibuti. Bah! Eu jamais ouvira essa palavra. Nem de longe imaginava que fosse nome de país do nordeste da África e igualmente o nome da capital desse pais. Mais pontos para a novidade.
O título do filme: “A mulher do coveiro”, não parecia muito animador, mas, bom, o filme era uma Coprodução de Finlândia, Alemanha, França, Somália e Catar, e tinha sido indicado pela Somália para receber o Oscar de melhor filme estrangeiro, em Hollywood. Tinha concorrido também no Festival de Cannes, em 2021. Alguma coisa teria de ter ali – pensei com meus botões…
E tinha.
“A mulher do coveiro” é um filme dolorosamente lindo. A história se passa numa aldeia miserável do Djibuti, próxima à capital. No meio da maior penúria, consegue mostrar a força do amor. Não apenas entre o casal Guled e Nasra, mas entre os amigos próximos.
Guled é coveiro. Ganha algum dinheiro, quando consegue encontrar trabalho. Para isso, ele e mais três companheiros fazem plantão perto do hospital. Em Djibuti, os mortos são disputados pelos coveiros. Os coveiros correspondem ao serviço funerário. A esposa de Guled, Nasra, tem uma doença grave e necessita de cirurgia, mas pagar como? A duras penas, há dinheiro para a comida no barraco precário em que habitam. Guleg e o filho dos seus dez anos tentam todos os biscates imagináveis e vão juntando moeda por moeda. Só que a quantia é ridiculamente pequena em relação ao montante necessário. Guled resolve engolir o orgulho e tenta obter uma parte da uma herança que está pendente. A tentativa dá errado.
Por estranho que pareça, no meio de todo esse sofrimento, existe alegria de viver, existe delicadeza e carinho, brotam atitudes generosas. O final do filme sugere que a esperança é a última coisa que deve morrer neste mundo.
Como curiosidade, cabe confessar que na saída do cinema me veio à cabeça uma marchinha de carnaval muito popular há anos: “Você pensa que cachaça é água”. A certa altura a canção diz assim:
Pode me faltar tudo na vida, amor, feijão e pão,
Só não quero que me falta a danada da cachaça.
Naturalmente essas palavras eram uma brincadeira adequada aos exageros dos carnavais antigos. Mas, é provável que a letra da canção tenha vindo à memória, porque saí do cinema convencida de que podem faltar muitas coisas nesta vida. Mas não a esperança.
Melhor se a marcha carnavalesca terminasse dizendo: Só não quero que me falte a danada da esperança.
Por Ivete Kist