Organizava cadernos e papéis em minhas entulhadas gavetas – um trabalho quase psicanalítico – quando achei a carta de uma ex-colega, lá dos anos 1980, tempos em que ainda se escrevia a mão, coisa anterior ao e-mail e redes sociais. Ela agradecia minha solidariedade, após uma fase depressiva e dizia achar graça dos exageros, da brutal carência e falta de amor próprio que a levara ao gesto extremo de tentar acabar com a própria vida.
E o fez com requintes de estilo. Redigira um texto de frases feitas, citações de grandes poetas e ainda gravara um último adeus – voz compungida – entremeada por soluços da mais pura e sincera mágoa contra o mundo cruel. Ó dor! Um momento assim é realmente devastador, especialmente no caso dela, casada com um pacífico e dedicado professor europeu, que chegara ao Brasil para uma curta temporada esticada pela paixão.
Ele só retornou quando o amor fez as malas e antecipou-se ao adeus. Partiu de repente, sem adeus. Sem aviso. Ela chorou o que pode. Sentia-se pior do que o mais vil dos seres humanos e assim, sufocada por uma devastadora torpeza, mirou-se no reflexo das mágoas e perguntou: “és afinal, uma mulher ou uma desprezível ratazana”? E se pôs a roer a estima feito minúsculo camundongo.
Correu à dispensa onde guardava produtos de limpeza. Encontrou um pacote de veneno granulado. O antigo Ri-do-Rato. Abriu o espumante francês que reservara para o fatídico jantar romântico que celebraria os cinco anos de vida a dois. As primeiras taças para lhe dar coragem, as demais para ajudar a digerir as quase dez pílulas. E assim, brindando ao seu final trágico, entre lágrimas e gargalhadas, embebedou-se.
De repente uma dor lancinante lhe torceu os intestinos. Era a ação do veneno. Um calor, uma força estranha, como se algo se movesse descontroladamente em seu ventre e tentasse rasgar-lhe as entranhas. Era o fim chegando, imaginou. E correu ao banheiro, onde de forma nunca antes vista, uma brutal, uma avassaladora diarreia a prendeu ao vaso. Morreria daquela maneira estúpida, humilhante? Após mais alguns longos e sofridos minutos tudo passou. E sentiu-se melhor. Muito melhor. Aliviada. Vazia.
O veneno deveria estar vencido, imaginou. Quando examinou outra vez o pacote, percebeu que ingerira um forte laxante que seu ex escondera ali. Ela tinha mania por dietas agressivas com esse tipo de medicação. Voltou à razão e abriu outro espumante. Desta vez para brindar ao homem que a jogara ao fundo do poço e que, de alguma maneira, a salvara do limbo.
Estava pronta, pós catarse, ou melhor pós diarreia, para ser feliz ou simplesmente curtir seu novo momento. Independente e lúcida. “De alguma forma, dele ficou aquele último gesto de carinho”, escreveu ela, que voltou a namorar. “Sem grandes expectativas, porque assim, dói menos”, aprendeu.