
O casal andava de implicância. Ora um, ora outro, arranjava um jeito para discordar de qualquer coisa. Até os pratos favoritos já não eram mais os mesmos. Pelo menos nas aparências porque, às escondidas, ela pegou o marido se deliciando com o bolo de milho que, horas antes, havia dito ter enjoado. E assim seguiam em uma nova – e chata – rotina. Ah! E as séries na TV? Um queria ação, histórias policiais, mas sempre surgia aquela possibilidade de um “dorama” asiático.
Tudo ia nessa base até o dia em que decidiram, em um raro consenso, comprar um imóvel na praia. Juntos, combinaram, milagrosamente, que seria uma casa próxima ao litoral. Ela já pensava em decoração, móveis enquanto ele procurava o cartão do ex-colega que, igualmente, havia largado tudo para viver em Torres. Era corretor de imóveis e conhecia o litoral norte gaúcho.
Circularam muito até localizarem a casa que ela amou (desde que fossem realizadas algumas modificações, é claro). Mas ele não curtiu muito. Ficava distante da praia. Mas como acontece quase sempre, foi vencido pelos argumentos da esposa tipo, “Até hoje, viveste a mais de 100km do litoral, agora são apenas quatro quadras.” Inteligente, era mestra diplomada em respostas lógicas. O preço negociado também foi favorável.
Em seguida vieram as discussões sobre a cor das paredes, trocar as portas, contratar um sistema de alarmes. Tudo é analisado em diálogos recheados de contrapontos. A discussão – sempre sem gritaria -, afinal era um casal discreto, só foi interrompida quando ela localizou, em um dos baús que esvaziava, já pensando na casa da praia, uma foto deles, abraçadinhos. Muito romântico.
“Olha só, meu amor, estamos lindos aqui”, disse ela para ouvir uma resposta cheia de ironia. “Aí na foto somos iguais a esses bonecos realistas, os tais reborn. Fofos, lisinhos e de bochechas coradas. Mas muito sem graça depois de algum tempo. Prefiro continuar assim, envelhecendo a teu lado em carne e osso, mas com alma e sentimento”.
E foi assim que encerraram o dia, felizes pelo destino que os unira. “Mas eu vou querer fazer um preenchimento labial,” provocou ela. “Será teu primeiro passo como esposa reborn, retrucou o marido, escapando imediatamente da sala, temendo o desaforo que certamente viria.