
Na semana passada foi aprovado aumento do número de cadeiras na Câmara de Deputados. As 513 atuais passam a 531. Mais deputados significa também mais cargos, mais assessores – cada parlamentar pode ter entre 5 e 25 assessores -, mais gabinetes, mais passagens. Ou seja, mais uma montanha de dinheiro, que contrasta com a penúria que aflige vários outros setores, tradicionalmente deixados à mingua.
Por que essa disparidade se estabelece e persiste?
Para quem quer compreender melhor, a sugestão é olhar para a nossa história. Ela permite reconhecer
o modo contraditório que veio organizando a sociedade brasileira, desde os tempos coloniais.
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Para clarear o cenário, é bom consultar análises feitas por estudiosos ao longo dos séculos. Se houver tempo para um só livro, a sugestão é ficar com “Casa-grande & senzala”, de Gilberto Freyre – obra publicada há quase cem anos, em 1933. Com um jeito de falar que em nada lembra a linguagem enfadonha dos livros congêneres, Freyre vai contando como a nossa vida social se organizou, desde o primeiro contato com os nativos da terra e como foi cimentada, depois, pela escravidão.
Já no título, a obra indica uma contradição de base. Ou seja, a sociedade brasileira foi organizada em categorias desparelhas. Veio junto com os séculos a noção de uma casa-grande, onde a comida, os móveis, as roupas, tudo era melhor do que as condições presentes na outra categoria, a senzala.
A Casa-grande podia caçar gente no mato – foi o que fez com os indígenas -, tanto como podia comprar gente – o que fez com os africanos. Podia depositar gente na senzala insalubre, para usar do jeito que melhor conviesse, inclusive para a própria diversão. A senzala, por sua vez, não via como se furtar à obediência. O máximo que fazia era se esquivar, driblar, escamotear, cair fora.
Como uma espécie de tatuagem esse entendimento perdurou. Ficou consagrada a ideia da coexistência de forças opostas que, em vez de se chocarem e se dissolverem, encontram maneira de conviver. É como se a aproximação dos contrários produzisse uma certa neutralidade. As demandas da casa-grande e da senzala não coincidem, mas continuam e não se enfrentam diretamente. Acham jeito de se acomodar. E resistem.
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Alguns vão encontrar nessa capacidade de relevar e de conviver sem explosões uma das virtudes brasileiras.
Seríamos avançados na arte de harmonizar a diversidade – inegavelmente um dos requisitos para a paz mundial. Outros vão achar que tínhamos de confrontar nossas divergências e deixar que o choque produzisse um equilíbrio equalizador.
E assim vamos indo. As contradições não se aplainam nem se dissolvem. Casa-grande e senzala continuam se equilibrando nas pontas opostas da régua bem conhecida. “E la nave va”.