Uma taça de vinho, um pote com frutas picadas e chocolate em lascas. Final de outono, imaginou que assim enfrentaria melhor o frio. Abriu as janelas, o sol nosso de cada dia rareia nestas estações. Precisava aproveitar as horas de luz. Volta e meia caía em melancolia. Ligava para as amigas. Queria assunto. E lá vinha algum programa tipo passeio em van. Nestes períodos queria metafísica, ir além da matéria, dar mais sentido ao relógio que travava o tempo.
Era nesta época do ano, enrolada em cachecóis, pães e caldos que relembrava o marido. Ele partira vítima de acidente de trânsito fazia algum tempo. Não tiveram filhos. As memórias eram suas crias. Lembrava aquela tarde fatal. Descera do carro – não era a sua hora – para assistir a uma camionete desgovernada, dirigida por um motorista embriagado, encurtar sua melhor experiência de vida a dois.
Haviam se passado cinco anos. E somente há pouco tempo sentiu-se atraída por alguém. Foi algo assim, sem intenção. Ela pedira um café expresso e lhe serviram um cremoso capuccino. Na mesa ao lado, um senhor recebia o expresso que era dela. Desfeita a confusão, foi elogiada por estar lendo poesia em pleno século 21. “Liberdade na vida é ter um amor pra se prender”, citou ele, confessando ter “roubado” a frase do poeta Fabrício Carpinejar, em um caderno da filha mais nova.
A conversa durou alguns minutos ali, outros minutos, por e-mail, e, nos dias seguintes, algumas horas de prosa. Em tímidos e fracionados encontros, souberam o suficiente para afastar riscos. Solitários, ele com filhos, ela com lembranças. Equilibrados, bem resolvidos e quem sabe prontos para algo novo.
Mesmo assim, fazia já uma semana que não atendia as ligações dele. E os perigos dessa vida? Estava satisfeita assim. No frio, um bom edredom lhe aquecia o corpo. Ao levar a taça de vinho aos lábios, ouviu o toque discreto na campainha. Não esperava ninguém muito menos ele que, educadamente, pediu para entrar.
A sala do pequeno apartamento, em tons pastéis, reduziu-se a uma concha apertadinha depois daquele primeiro beijo macio, mas com muita “pegada”, como gostava de dizer. Às suas costas ouviu o ruído de papel celofane amassando-se. Era ele a colocar um botão de rosa vermelha no vaso.
Naquele final de semana, não teve passeio de van com as amigas, nem qualquer proposição metafísica. Mas no sábado seguinte, anunciaram o namoro. Que festejou o amargo-doce outonal que, afinal, é a cara da vida, mesmo para quem não mora na filosofia e nem tem pudores de rimar amor e dor.

