Tudo nele parecia irritável. A situação andava tão crítica que ela o via como uma grande lagartixa a arrastar-se pela parede do imaginário, ou uma espécie de sanguessuga que lhe roubava toda energia e ainda exigia sempre mais. “Amorzinho, já tomou o remédio?” “Não te esquece da academia”, lembrava, ao contrário de muitos maridos que não aceitam muito bem as esposas nestes espaços. Pela manhã, o danado sempre preparava frutas e um suco. Media a torrada para não exagerar na manteiga, no mel que reconhecia ser saudável, mas “sem exageros”.
Não era um marido, era um fiscal. Um nutricionista improvisado, um serviçal doméstico eficiente. Ela nunca chegava atrasada no trabalho. Ele a despertava sempre, com toque suave para não agredi-la. Era carinhoso. Quem quer ternura às 5 da manhã? Assim, até ao meio-dia, sentia-se em estado dormente. Lá pelas tantas acordava. Santo café expresso! E aí, no whatsapp, ele que sabia tudo, recomendava. “Meu bem, olha que café escurece os dentes!”
Nas redes sociais, ela era ultracomportada. Ele sabia disso, mas preocupava-se com o sedentarismo. Com o esforço exagerado para os olhos. Entrava em cena o marido-oftalmologista com dicas de origem duvidosa da Internet. Chatice! Quem acreditava naquelas pesquisas de universidades estrangeiras, das quais, nunca ouvira falar? Ele, ora! A versão marido-motorista a agradava mais. Levava à academia, fazia as compras da casa. Prestativo e de boca fechada. Atento ao trânsito.
A versão marido-secretário-executivo a tirava do sério. Lembrava datas de aniversário de qualquer ex-colega, ex-chefe ou ser vivo que haviam cruzado. E lá estava ela ligando para uma prima distante, uma madrinha esquecida de infância. As velhas adoravam a lembrança.
Sim, ele era um chato. Metódico, definira as sextas-feiras como o dia do cinema. O mundo podia desabar, um cometa cair na vizinhança, sempre haveria um lançamento em cartaz. Nas quartas, frequentavam alguns bares bacanas, mas todos relacionados com a história de namoro. Era o dia da paixão e ele, infalível, de tempos em tempos a presenteava com alguma roupa íntima sexy. Ela argumentava que amor e prazer não precisam de rotina.
Ele não era ciumento, mas certa vez, teve um chilique quando a viu almoçando com um colega do almoxarifado. “Mulher minha não confraterniza sozinha com um cara desses!” Ele não confiava na possibilidade de amizade sem riscos entre homens e mulheres. “Um dia ele mostra as unhas. Conheço esses tipos.” A crise foi superada em menos de 24 horas. O casamento seguiu a rotina óbvia, as mesmas marcas de papel higiênico, as mesmas pastas de dente. Ele só não se envolvia nos shampoos que ela escolhia. Até o dia em que ela radicalizou e o mandou embora.
Monotonia nunca mais! Queria tudo novo. Sem homens! Queria refazer a turma de amigas. Queria o direito de atrasar no trabalho, comer frituras. Um pudim inteiro! Quem liga? E assim, viveu exatos sete meses. Passado esse tempo, sentiu falta do café, das frutas, da atenção especial de todo o dia. O colega, bom amigo do almoxarifado, confirmou a tese do ex e lhe passara uma cantada. Nojo! Homem é tudo igual.
Voltou para a casa, onde uma bagunça a esperava e um estranho vazio a preocupava. A turma de amigas? Casadas. Só falavam de filhos. As solteiras, festeiras demais. Aquele vazio, poderia chamar-se saudade. Mas quem sentiria falta de um chato?

