Passou em uma loja de tintas. Escolheu cores vivas, as mesmas que tantas vezes recusara por temer uma irresponsável sensação de alegria em sua casa. Os livros que decidira queimar, seriam doados a uma escola. Os móveis, antigos, sofreriam um tratamento à base de pinturas especiais. Quem sabe aquela amiga decoradora o ajudasse na missão? Homem não tem lá muito jeito para isso. Queria tudo mais racional, sem perder o acolhimento típico de uma típica casa de vovô. Sim, um dia teria netos.
Aos amigos dizia que agia de maneira sustentável. Poltronas de madeira maciça receberiam novas estampas. Divorciado à beira do que institucionalizaram chamar de terceira idade, pensava no que um homem, sozinho, faz aos 60. Essa dúvida o incomodara nos meses anteriores e agora tinha uma boa resposta. “Além dos cuidados físicos, exige muita reflexão e um cuidado extra para não transformar solidão em presídio”.
E foi no caminho dessas reformas que abriu um antigo baú esquecido pela ex-mulher. Sim, ela partira para outra cidade em uma nova missão profissional. Os contatos entre eles seriam apenas para discutir questões envolvendo filhos e, futuramente, netos. Entre recortes de receitas, tecidos e papéis para presente, encontrou uma caixa fechada com um minúsculo cadeado.
A ex costumava guardar bilhetes, cartões postais das viagens que haviam feito juntos. Abriu sem dificuldades, ou culpas, o cadeado e mergulhou o olhar no conteúdo de fotos antigas e de dezenas de cartas nunca enviadas. Todas endereçadas a ele. Achou-se assim, no direito de lê-las. Quem sabe não estariam ali justamente para isso?
A caligrafia bonita narrava com elegância o esgotamento de uma relação. Lamentava uma espécie de egoísmo que atinge muitas relações e as transforma em nada. Reconhecia defeitos seus, mas dizia sentir-se vítima das ausências dele. Do isolamento imposto à vida comum. Sem visitar amigos, circulando sempre entre o mesmo grupo. Acomodados em todos os sentidos.
Cada palavra era uma chave a abrir gavetas trancadas em anos de fuga, desinteresse. Abriam-se justamente na hora do pós-adeus. Chorou quando percebeu seus erros e a tristeza não compartilhada. “Tu poderias perguntar por que não te reclamei pessoalmente tanta angústia. Entraríamos em conflito na guerra dos que sempre tem razão e que, em verdade, enlouqueceram juntos. O teu tempo de mudanças, com certeza não era o meu. E não suportaria te esperar até este momento impreciso, sem agenda”, concluiu.
Juntou as cartas e percebeu que, afinal, admirava e ainda amava aquela mulher. Mas seguiria em suas mudanças, sem regressos. Os móveis seriam reformados, trocados de lugar, as paredes refletiram harmonia e luz. Até uma nova relação, ideia tão distante, voltou a cogitar. Quem sabe não surgiria alguém disposto a dividir, na maturidade, um sentimento que pode durar uma eternidade, desde que se aprenda a arte do convívio. Sim, convívio.

