“Perto daqui
Estão depositados os despojos daquele
Que possuía Beleza sem Vaidade,
Força sem Insolência,
Coragem sem Ferocidade,
E todas as virtudes do Homem sem seus Vícios.”
(Epitáfio escrito por Lord Byron a seu cão Boatswain)
Coragem era um cachorrinho sem linhagem, mas simpático. Primeiro chegou lá em casa de rabo entre as pernas, querendo amizade com Max, o pastor alemão que teoricamente deveria cuidar da casa. Descobri que tinha até dono. Eu o botava para correr, mas não adiantava. Ele escondia-se nas macegas e lá pelas tantas estavam eles de travessura. Meu velho cachorro era solitário, sofria com aquelas dores ósseas típicas da raça e Coragem o obrigava a movimentar-se. Juntos, passaram a azarar as cadelinhas da vizinhança e a fazer todas aquelas coisas fantásticas dos cães, como destruir as folhagens da minha mulher, ou latir para toda roda de automóvel que ousasse passar diante de meu pátio.
Eu o apelidei de Coragem porque lembrava o cachorrinho do desenho do Cartoon Network, que morria de medo das aparições e fantasmas que assombravam a casa de seus donos – o mal-humorado Eustácio Bagge e sua esposa Muriel, que adorava o bichinho. O Coragem lá de casa também tinha seus fantasmas e assombrações. Lembro que para me aproximar foi uma barra. Mesmo liberando ração, ele me olhava com desconfiança. Era amigo do Max e ponto final.
Mais tarde descobri que seu medo era apenas de gente. Porque se entrasse qualquer outro bicho lá em casa, fosse cavalo, vaca ou mesmo cães maiores, ele não se mixava. Rosnava com cara de poucos amigos. Nessas horas fazia justiça ao apelido irônico. Um vizinho me contou que Coragem sofrera maus-tratos de seus antigos donos e, com certeza, por isso fugira. Escolhera a rua e, posteriormente meu pátio, para viver.
Aos poucos conquistei o bicho. Quando queria alguma coisa, não latia. Ele grunhia. Emitia sons como se quisesse falar. E foi assim, ouvindo as lamúrias de Coragem que consegui um primeiro cafuné em sua cabeça muito suja. Desacostumado com carinho, o bicho não sabia o que fazer. Mostrava os dentes porque, acreditem, Coragem sabia sorrir! Arreganhava a dentadura e chorava de tanta emoção com o carinho. Depois saía a correr eufórico pelo pátio. Só depois disso comia a ração. Isso todo dia ao chegar em casa. Era a nossa rotina.
Mas assim como tantos seres humanos, Coragem tinha lá seus traumas. E não deveriam ser poucos. Eu não conseguia lhe dar banho, por exemplo. Coloquei coleiras e ele sempre as arrancava. Vacinas eram um inferno. Torci um dedo – caí no chão e saí rolando – ao tentar lhe aplicar medicação. Por pouco, na confusão, não me espetei e saí “vacinado” contra doenças caninas. Levar em uma pet shop, nem pensar. Ele simplesmente surtava. E assim, foram esses fantasmas do passado que acabaram encurtando a vida de Coragem.
No início do verão, ele apareceu com uma bicheira nas costas. Tentei de tudo para lhe aplicar remédios. Ração, cafuné, coleira reforçada, ameaças. Mas ele ouvia o barulho do spray e corria alucinado. Depois de um tempo, não queria mais nem me ver. A ferida aberta nas costas e ele, certamente com muita dor, não me deixava chegar perto. Simplesmente desaparecia no mato. Era da rua, sabia por onde sumir. Aparecia à noite, quando estávamos a dormir. Eu percebia sua presença em função do cheiro e da marcas de sangue.
Sexta-feira passada Coragem morreu, na porta de casa, devorado pela bicheira. A violência, mais do que cicatrizes, havia lhe aprisionado a confiança. Coragem era um prisioneiro dos traumas, como muita gente que não desfruta a alegria da entrega incondicional, porque tem contra si a memória trágica do abuso extremo. Vou sentir falta do Coragem. Que me permitiu alguns tímidos cafunés, que aproveitou com desproporcional alegria. Aliás, fazia bem ver aquele bichinho sofrido em quase êxtase. Lá, no Céu dos Cachorros, com certeza, não lhe faltará o carinho que a vida aqui lhe negou.
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Ari Teixeira
