Nasci e passei minha infância no bairro Bela Vista. Foram momentos inesquecíveis que costumo dividir com meus filhos. Eles nutrem grande curiosidade sobre minha rotina de criança. Alguns detalhes desta época causam frisson na gurizada, como o fato da primeira Copa do Mundo ter sido transmitida ao vivo pela televisão somente em 1970.
Foi um fato memorável. Toda a família se reunia para torcer pelo timaço de Pelé. No jogo Brasil e Inglaterra, o mais difícil da disputa que teve vitória do Brasil por 1×0, havia 14 pessoas em torno da tevê. Na hora do gol do Jairzinho meu pai temeu pela resistência do assoalho da casa. Depois da vitória final, contra a Itália, lotamos a carroceria de um caminhão da Bebidas Bela Vista e debaixo de chuva forte comemoramos com foguetes, toalhas verde e amarelas, além de muita gritaria.
Eu e minha irmã íamos a pé para a Escola Luterana São Paulo onde trocávamos pão caseiro por biscoito e bolacha Maria. No inverno levávamos um par de chinelos sobressalente para usar na sala de aula. Os calçados embarrados – o trecho até a cidade não era pavimentado – ficavam do lado de fora para não sujar o interior da escola. Lembro que tínhamos aulas de caligrafia e desenho aos sábados. E que dona Dorothea Suhre era a “mãezona” de todos nós. Lembrança inesquecível que ainda mora na minha memória com nitidez ocorreu no dia 16 de julho de 1969. Nesta data o astronauta Neil Armstrong foi o primeiro ser humano a pisar na superfície da lua.
Um aparelho de televisão à válvula foi instalado no meio do pátio da escola sobre uma mesa. O palco estava montado! Assistimos boquiabertos o homem de macacão branco e capacete que parecia de vidro caminhar em câmera lenta e fincar a bandeira norte-americana em solo desconhecido. Antes do show tomamos sopa e leite em pó, a partir de ingredientes enviados em embalagens com as cores dos EUA sob a inscrição “Aliança para o progresso”, programa de ajuda dos americanos para a America Latina.
O sentimento de solidariedade era forte entre amigos, familiares e vizinhos da Bela Vista
Lembro com nitidez que nas férias costumava ficar na casa dos meus avós Bruno e Wilma Kirst, que “moravam na cidade”, para assistir aos jogos do “campeonato da praça”. Recordo ainda que passávamos os domingos de verão na beira do rio, enterrando garrafas de Minuano limão e Serramalte para gelar.
A cada relato meus filhos fazem cara de incredulidade e não contêm a curiosidade: “Pai, como vocês viviam ser internet e celular, heim?”. Conto que poucas pessoas tinham telefone, luxo que custava caro e tinha tarifas proibitivas e computador era coisa de filme de ficção científica. Lembro também que muitas vezes à noite sentávamos na frente de casa reunindo um bando, de amigos, vizinhos e familiares para driblar a falta de luz motivada pelo racionamento de energia elétrica da década de 60.
Faço questão de enfatizar a eles este espírito comunitário quando um vizinho carneava um suíno e todos acorriam à residência do proprietário para ajudar. Em troca cada um levava morcília, um naco de carne ou torresmo que deixava a todos com água na boca.
Fazer em casa produtos que hoje se encontra em qualquer minimercado era comum. Dona Gerti, minha mãe, fazia suco de uva, com a fruta colhida nas parreiras do seu Gilberto Jasper. Ela também era especialista em manejar o taxo para preparar a gostosa schimier de pera e geleia de goiaba, coisas impensáveis nos dias de hoje.
O grande aprendizado da minha infância se resume à solidariedade e à certeza de saber que, a poucos metros de casa, sempre havia alguém disposto a ajudar, acudir ou socorrer a quem tivesse um problema.
Não tínhamos internet, nem smartphones ou tevê a cabo, mas bastava surgir a dor das primeiras contrações para que um vizinho corresse em buscar a parteira mais próxima. Graças a isso nasci em casa, sadio, com cinco quilos e com saúde de ferro!