Falta de bom senso, estrutura inadequada, fiscalização branda, possibilidade de funcionar mesmo com alvará vencido. São tantos erros ainda sem uma explicação razoável que prolongarão, não se sabe por quanto tempo, a dor das famílias das 235 vítimas do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ocorrida no domingo. Dos 143 internados, 83 estão em estado gravíssimo.
Cinco dias se passaram desde a fatídica madrugada. Enquanto a Polícia Civil está com as investigações na fase inicial, os reflexos são sentidos por todos os brasileiros. Infelizmente, foi necessária uma tragédia deste patamar – a segunda maior do Brasil, envolvendo incêndios – para que alguma atitude em busca de mais segurança fosse tomada por parte das autoridades.
A principal discussão é quanto a criação de um código nacional de combate e prevenção a incêndios. No Brasil, inexiste tal norma e cada Estado e município é responsável por estipular as regras, normalmente baseada nas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). A falta de uma regra nacional, que direcione os procedimentos, é questionada por alguns especialistas.
Telmo Brentano, engenheiro e especialista em combate a incêndio, informou durante entrevista ao portal na internet G1 que a legislação brasileira é uma “colcha de retalhos”. O Corpo de Bombeiros é responsável por conceder alvarás de funcionamento para estabelecimentos, sempre baseada em normas estaduais.
Opinião semelhante tem José Carlos Tomina, superintendente do comitê brasileiro de segurança contra incêndio da ABNT. Para ele, o conjunto de regras ajudaria a estabelecer requisitos básicos de segurança, que deveriam valer para todo o território nacional. As legislações estaduais deveriam adaptar às realidades regionais – assim como as municipais.
Para o arquiteto Marcos Fajardo, de Porto Alegre, o que falta no Brasil é uma fiscalização mais rígida. “As nossas regras são baseadas nas normas americana e britânica.” Cita o código de prevenção a sinistros da capital como um dos modelos, normalmente seguidos por municípios do interior.
A norma de referência usada por bombeiros para a liberação de casas noturnas é o 9.077 da ABNT. Entre as regras, estão: uso de extintor de incêndio, sinalização de saída; iluminação de emergência; hidrante; alarme; ventilação no teto e “sprinklers” – popularmente conhecidos como os chuveirinhos que ficam no teto.
Caso este último item seja ignorado, é necessária uma saída de emergência a cada 20 metros, com uma porta de pelo menos 1,6 metro de largura. Nenhuma destas opções constava na boate santa-mariense.
“Como o revestimento acústico era inflamável, se tivesse as saídas no teto para a ventilação, não teria tanta fumaça no ambiente”, acrescenta Fajardo. “Elas também têm que ser feitas com material não combustível (resistentes ao fogo).” Uma perícia preliminar aponta que a maioria das vítimas morreu por asfixia, em um dos banheiros, enquanto tentavam abrir as janelas – fechadas com madeira, como forma de evitar a saída do som e impactar menos a vizinhança.
Grau de risco médio
A boate Kiss tem cerca de 615 metros quadrados e, segundo as normas da ABNT, é classificada como grau de risco médio. Dados do Corpo de Bombeiros de Santa Maria afirmam que a ocupação máxima do local era de 691 pessoas, mas, durante a fatídica festa, tinha mais que o dobro.
Só este fato infringe parte do alvará. Soma-se aos motivos da tragédia o isolamento acústico com material inflamável e a falta de bom senso de parte dos integrantes da banda, que acionaram um sinalizador – do estilo “Sputnik”, que fica no chão. Faíscas atingiram o material, que alastrou o fogo em questão de minutos. A fabricante não recomenda o uso do produto em ambientes fechados.
As sequelas de uma tragédia
A região tem histórias tristes e felizes do mesmo episódio. Na segunda-feira, a estudante de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Fernanda Tischer, 21, foi sepultada em Fazenda Vilanova. Natural de Paverama, estava no segundo semestre do curso.
Por outro lado, a família Berwanger, de Arroio do Meio, vive um momento distinto. Depois do susto de imaginar que Joel, 18 anos, universitário de Agronomia da mesma faculdade, tinha morrido, o alívio: ele foi encontrado vivo e está internado no hospital Caridade, de Santa Maria, onde se recupera de uma pneumonia química – por inalar muita fumaça.
Joel sofreu queimaduras leves nos braços e nas costas e, até a tarde de domingo, se recuperava com facilidade. Depois do período de observação, o quadro mudou, inspirando mais cuidados – situação prevista pelos médicos, em função do próprio organismo que iria expelir a intoxicação. Ele passará por um processo de eliminação de toxinas e será liberado até que seja eliminado 80% dos gases tóxicos do pulmão, para que não fiquem sequelas.
Por enquanto Joel ainda respira com a ajuda de aparelhos e realiza fisioterapias pulmonares, além de exercícios respiratórios. Até o fechamento dessa edição continuava internado no hospital.
Joel não retornou para Arroio do Meio no fim de semana devido a um campeonato de futebol, cujo time ficou campeão – um dos motivos que reforçaram sua presença na boate – todos os companheiros de time faleceram. O estudante confirmou que os extintores de incêndio não funcionavam. A família está confiante na recuperação. Joel ficará pelo menos 30 dias para fazer uma cirurgia.
O sonho dos pais de Fernanda, de terem a propriedade rural sob o comando da filha, se esvaiu no início da tarde de domingo. A estudante de Veterinária queria se formar para dar continuidade aos negócios da família, que trabalha com a produção leiteira. Tinha a intenção de abrir uma clínica.
Fernanda morava em Santa Maria havia três anos. No início, se preparou em cursinhos de pré-vestibular. “Ela era dedicada, estudiosa, esforçada, tímida, humilde e alegre”, comentaram.
Uma amiga, Franciele Gusatto, 20 anos, natural de Francisco Beltrão (PR) estava na boate na noite da tragédia. “Eu consegui sair a tempo, mas estava com outra turma”, afirma. Fernanda era estagiária da Clínica de Ruminantes, integrante da empresa Junior em Veterinária (Techvet Jr.) e do diretório acadêmico do curso.
O namorado, Robison Lineman, 24 anos, relata que Fernanda era uma pessoal leal, querida e alegre. “Estou péssimo. É como perder uma mãe”, desabafa. Ele revela que haviam se desentendido há cerca de uma semana, mas teriam feito as pazes na noite de sexta-feira. Os dois completariam um ano de namoro em fevereiro.
A mãe Diana, 45 anos, e a irmã Taís, 15 anos, receberam solidariedade de familiares, amigos e comunidade. Há seis anos, o pai de Fernanda faleceu ao cair de um telhado, na propriedade. Fernanda foi sepultada no cemitério evangélico de Santana, comunidade situada na divisa entre os municípios de Fazenda Vilanova e Paverama.
Amiga das vítimas
A estudante da UFSM, Joana Closs Engelhardt, ainda tenta se recompor da tragédia. Sabe que será difícil, pois sabe que poderia estar na lista de vítimas. “Eu e uma amiga nos encontramos com os amigos e depois iríamos para a boate nos divertirmos.” Por alguma razão, decidiram não ir ao local. Poucas horas depois, Joana recebeu ligações que a boate estava pegando fogo.
Primeiro, houve a suspeita de que se tratava de engano ou brincadeira. Porém, perceberam que era realidade, dada a frequência das ligações. “Chegamos na esquina da boate e vimos a dimensão da coisa”, relembra.
Diversas ambulâncias, carros de polícia, caminhões de bombeiros estavam espalhados pelas ruas, na tentativa de salvar vidas e conter as chamas. “Entramos em desespero. Começamos a ligar para amigos, conhecidos.” A esperança se transformou em dor instantes depois: pelo menos três conhecidos morreram na tragédia.
Dois amigos continuam internados no hospital, por pneumonia química. Os sentimentos, agora, se confundem entre agonia, tristeza e revolta. Conta com o apoio de amigos e familiares e tenta, de alguma forma, auxiliar nas pessoas que perderam os entes queridos por um conjunto de irresponsabilidades.
Divergências
A atribuição de responsabilidades pela tragédia de Santa Maria causa divergências na região. Enquanto alguns profissionais do ramo acreditam se tratar de uma fatalidade, outros apontam negligência.
Estevam Kerbes, o “Tetê”, atua há seis anos em diversas casas noturnas do Vale do Taquari. Para ele, o acontecimento na boate Kiss foi uma fatalidade, que poderia ocorrer em qualquer lugar com aglomeração de pessoas.
Ele questiona a intensa busca pelos culpados – por parte da sociedade e da própria imprensa – pelo episódio. “Quem são os verdadeiros culpados dessa tragédia? Os donos da casa noturna, os músicos ou a legislação brasileira, que liberou o alvará para este local, mesmo tendo a supervisão dos bombeiros e da prefeitura?”
O promotor de eventos da região, Tiago Nicaretta, é mais ponderado. Ressalta que a responsabilidade maior é do produtor de eventos. Conta que sempre levou o quesito de segurança a sério e não se restringe a analisar o caso.
Diz que muitos fatores podem ter contribuído para que ocorresse a tragédia. “Claro que a negligência da banda em acionar um ‘sputnik’ em local fechado é inaceitável”, mas acrescenta outras situações, como: o extintor de incêndio não funcionar; a falha no acionamento das luzes de emergência; a superlotação e uma única saída de emergência.“E se o fogo tivesse começado na entrada da boate, por onde sairiam as pessoas?”
Neste sentido, Luis André Weizenmann, o “Tampinha”, proprietário de duas boates em Arroio do Meio reclama uma fiscalização mais rigorosa. “É a principal mudança, a fiscalização de todos os salões e aqueles que não tiverem as adequações necessárias deveriam ficar impedidos de fazer eventos até se adequarem.”
Critica que foi necessária a morte de tantas pessoas para que, agora, se começasse a ver as coisas erradas. “Uma tragédia que deixará muitas lições”, desabafa.
Mais fiscalização
Tragédias como a de Santa Maria, infelizmente, são responsáveis por fazer uma comoção geral e obrigar as autoridades a agirem de forma mais enérgica contra as irregularidades. Diversos municípios, desde segunda-feira, começaram a revisar as condições das casas noturnas, para evitar que este acontecimento seja repetido.
Exemplo é a prefeitura de Americana (SP), que determinou a suspensão de todos os alvarás de boates que estavam irregulares – uma mostra de conivência com a negligência de alguns empreendedores. Na região, o prefeito em exercício de Lajeado, Vilson Jacques, determinou a reavaliação de todas as casas noturnas da cidade. O levantamento apontará quantas seguem à risca o que determina a lei.
Em Porto Alegre, o prefeito José Fortunati também prometeu uma fiscalização “mais dura”. Junto com o Corpo de Bombeiros da capital, os fiscais da Administração Municipal realizarão vistorias em todas as casas noturnas para saber qual a real situação.
Medida semelhante ocorreu no ano passado, quando mais de 30 estabelecimentos do bairro Cidade Baixa – um dos mais movimentados da cidade – foram fechados por descumprirem as regras e não terem alvarás para as atividades que exerciam.
Entretanto, algumas prefeituras estudam o que será feito. É o caso de Nova Bréscia. Depois de uma reunião foi decidido transferir o local do baile da Sociedade Tiradentes para o Ginásio Poliesportivo considerado mais seguro.
Fiscalizações mais rígidas foi um pedido da presidente Dilma Rousseff, durante a reunião com os novos prefeitos em Brasília na segunda-feira.
Mobilização regional
O incêndio na boate Kiss comoveu todo o Estado. Milhares de pessoas buscaram os bancos de sangue locais para doar sangue, solicitando que fosse encaminhado para as vítimas do incêndio de Santa Maria. Muitos tiveram de voltar para as casas, porque o estoque coletado no fim de semana foi o suficiente para ajudar.
No Vale do Taquari, não foi diferente. A farmacêutica bioquímica e uma das responsáveis pelo Hemovale, de Lajeado, Leila Dahmer, conta que diversas pessoas foram ao local especialmente para fazer a doação.
“No momento, eles não precisam mais de sangue, mas se for solicitado, a gente encaminha.” A mobilização proporcionou uma realidade diferente para o Hemovale. No período de verão, quando as pessoas aproveitam para tirar férias, há um declínio de doações.
Leila ressalta que diversas campanhas na imprensa e com a comunidade contribuíram para o resultado positivo. “O nosso problema mesmo é no Carnaval, que muita gente vai para as festas e nós ficamos com os estoques baixos.”
A coordenação do Hemovale solicita aos interessados em doar sangue para efetuarem o procedimento a partir de segunda-feira. O estoque será usado para as possíveis vítimas do Carnaval.