“A gente tem todas as idades”, disse Mário Quintana, tão logo meu filho Marcel ligou o gravador. Estávamos no Hotel Residência, casa do poeta, para um encontro que eu estava me devendo há muito tempo.
Ao contrário da forma como sempre me preparei para todas as entrevistas, desde o primeiro momento descartei qualquer pergunta “pré-fabricada”. Estava decidido a tratar a emoção com uma enorme dose dela mesma.
O tema seria Mário Quintana e suas joias em forma de poesia e seu jeito quase criança de ser adulto.
“Da vez primeira em que me assassinaram…” deu chance à pergunta sobre a primeira namorada.
“Nem me lembro dela, sabe? E sabe do que mais? Nem do sobrenome da família!”
E riu solto, como o guri que acaba de encontrar um ninho de sabiás, com quatro filhotes, no quintal de casa.
“Recordo ainda e nada mais me importa,…” fez o Mário, literalmente pular da cadeira, do outro lado da pequena mesa, na sua sala: “desta eu me lembro” – e passou a intercalar, com voz opaca e memória cristalina, os versos cheios de emoção ditos pelo guri, que mais do que nunca, eu fui naquela hora.
“Eu quero os meus brinquedos novamente, sou um pobre menino, acreditai, que envelheceu um dia, de repente”, finalizou aquela criança ao meu lado, quase como a recomendar: não se deve crescer!
“Essa poesia eu ofereci a Dyonélio Machado que, quando declamava, anunciava antes: vou dizer, a joia”.
Quintana me pareceu estar no auge da felicidade, percorrendo caminhos nos quais se sentia muito à vontade.
De repente, no que pareceu um grito, aquela voz arrastada pelas 82 primaveras, como disse várias vezes, puxou lá do fundo d’alma: “Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver! Você é louco? Não, sou poeta!”
Mário Quintana sempre se deu a conhecer através de suas palavras, falava só o necessário. Como em seus versos, onde não há demasia nem mesmo de vírgulas.
Quem sabe suas frases, conhece-o na direta proporção do que sabe.
Conheci-o quase nada, nem mesmo posso dizer que fui seu amigo mas, entre os troféus mais valiosos que possuo, está uma dedicatória com a qual ele brinca comigo: “Ao Raul Moreau, uma lembrança do seu cúmplice em poesia”, está escrito em um de seus livros que guardo com carinho.
Passamos quase por cima da Academia Brasileira de Letras, tão logo percebi que o assunto não era do seu agrado. Talvez por isso, ao final, o poeta resumiu tudo em uma só frase: “Foi tudo muito bom. Você não me deu trabalho. Só ficou aí, dizendo meus versos”.
Pura verdade! Se eu, depois desta experiência que tive com o Mário, pudesse aconselhar (quem sou eu?) qualquer repórter a como se comportar, nestes casos, talvez dissesse: não se comporte! Esqueça que você é tiete, que tem quase todos os seus livros e sabe dizer dezenas de suas poesias. Não se preocupe em incomodá-lo. Pergunte!
Fiz como um atacante que, no jogo decisivo, erra o pênalti de propósito em solidariedade ao goleiro que admira.
De vez em quando, ouço de novo a gravação “do jogo”.
Uma hora e meia de pura emoção. Quintana gargalhou umas 30 vezes e eu transpareci agradecimentos a cada uma delas.
Até hoje lembro as ligações que recebi de ouvintes, talvez pouco exigentes, satisfeitos com a matéria.
Sei, não…
Um guri de 45 anos (na época) entrevistando um de 82, não me parece recomendável.
Afinal de contas, quem iria pôr ordem na casa?