De que a internet e o celular revolucionaram a vida das pessoas, ninguém duvida. As facilidades que estas duas ferramentas trouxeram para o dia a dia são inúmeras. Contudo, o bom senso no uso de ambos nem sempre prevalece. Basta um apelo convincente e um momento de impulso para rotular uma pessoa para sempre. Uma foto ou um vídeo de sua intimidade podem gerar consequências inimagináveis se compartilhadas na rede.
Nas últimas semanas, o caso de duas jovens de Encantado, que tiveram fotos e vídeos íntimos vazados na internet, teve repercussão na mídia nacional. A culpabilização das vítimas, por parte de um profissional da imprensa local, fez com que a situação se tornasse ainda pior. Solidárias às jovens, um grupo de mulheres se mobilizou e criou o Coletivo de Mulheres de Encantado e Vale do Taquari. O caso foi levado à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, que esteve em Encantado ontem, ouvindo a comunidade, autoridades e o Ministério Público.
As jovens de Encantado denunciaram o caso à polícia, que apura os responsáveis pelo vazamento. Vítimas deste tipo de situação são amparadas por lei. Contudo, mesmo que os responsáveis pelo vazamento sejam identificados e punidos, as consequências emocionais e psicológicas podem ser devastadoras.
Mais comum do que se pensa
Para a psicóloga e especialista em sexologia e terapia de casais Greice Vendramin, casos de vazamento de fotos e vídeos íntimos acontecem com muita frequência. E os adolescentes não são as únicas vítimas ou repassadores dos arquivos. Há muitos casos que envolvem adultos.
Greice diz que faltam informação e orientação no que diz respeito ao comportamento em redes sociais e aplicativos de celular. “Muito se fala do que acontece mas, em nenhum momento, se fala em prevenção a este tipo de problema. Falta informação para quem envia os arquivos e também para quem os repassa. Na maioria das vezes as pessoas não pensam nas consequências e nos danos que isso pode causar”.
No intuito de evitar que novos casos aconteçam, a psicóloga aconselha os jovens e adultos a pensarem muito antes de se expor desta forma. “As vezes é uma ação feita por impulso, com consequências para toda a vida. Muitos dizem que não vão repassar as fotos para ninguém, mas se a pessoa que recebeu as fotos perder o celular? Depois que foi para a rede não há mais controle e há muitas consequências. Os danos psicológicos virão depois”, afirma.
Os danos aos quais se refere, são muitos. Vão desde a vergonha e o isolamento, até situações mais sérias, como depressão e suicídio. Por isso, é importante que a vítima tenha acompanhamento psicológico. Greice diz que nestes casos é melhor que a vítima se resguarde por um período e depois encare a realidade, por pior que ela seja. “Infelizmente a pessoa vai ter um rótulo para toda vida. Pode buscar a punição para quem espalhou os arquivos, mas o dano psicológico já está instaurado. Assim como a vítima responde por seus atos, quem espalhou as fotos ou vídeos também precisa arcar com as consequências”, afirma, salientando que, na maioria das vezes a pessoa que envia as fotos não se dá conta do dano que está causando.
O apoio da família nestas situações é imprescindível. “Se a família culpar e desmerecer a vítima, vai piorar seu estado. Os pais precisam trabalhar a prevenção, conversar com os filhos e orientar para que não se exponham desta forma e não exponham outras pessoas. É preciso alertar sobre os perigos que as redes sociais e aplicativos oferecem e conscientizar os filhos sobre as consequências dos seus atos”.
Necessidade de aprovação
Em tempos em que as redes sociais e o contato mediado pela internet são mais atrativos do que as relações presenciais, a necessidade de aprovação é uma constante. E a exposição do corpo é uma das formas de se conseguir esta aprovação diante dos demais.
Entre os adolescentes, a situação chega a extremos. As curtidas no Facebook são um parâmetro para “medir” a aceitação. Quando uma menina posta uma foto mais sensual e tem muitas curtidas, ela passa a ver que aquele padrão de imagem é o que agrada aos demais e passa a repeti-lo, como se esta exposição fosse a “fórmula” para ser aceita. E esta “aprovação” passa a ser o estímulo para continuar mostrando o corpo.
Para Greice, os rapazes que instigam a nudez das moças em fotos ou em vídeos, também buscam a autoafirmação. Depois de obter o arquivo, o compartilham com amigos para se vangloriarem da conquista ou, então, como vingança no final de um namoro. Ela acredita que esta superexposição é fruto do momento em que a sociedade vive, onde a sedução não se dá mais através do diálogo e de valores, mas tem o corpo como o maior apelo. “Infelizmente casos assim não vão ter fim. Vamos ver muitos desses ainda. São mais frequentes do que se imagina. O diálogo ainda é a melhor forma de prevenção. Os pais precisam orientar os filhos para que estes não se exponham e não exponham os outros e o tema deve ser debatido nas escolas também. Quanto mais se falar e orientar, teremos menos riscos de novos casos acontecerem”.
Internet não é território sem lei
A advogada Kátia Silene Scheid Zimmer, diz que a vítima da divulgação ou compartilhamento de arquivos não autorizados pode processar os responsáveis pela propagação, penal e civilmente. Ela observa que, de forma geral, a responsabilidade por atos na internet é idêntica àquela causada por atos no mundo físico.
AT – O que diz a lei em relação à distribuição de fotos e vídeos de conteúdo íntimos, sem a autorização da pessoa fotografada ou filmada? Qual é a punição para quem compartilha estes arquivos?
Advogada Katia Scheid Zimmer – O caso no qual duas jovens de Encantado tiveram fotos e vídeos íntimos divulgados nas redes sociais, traz à tona uma discussão importante e ao mesmo tempo, demonstra a gravidade do caso. Várias meninas, em diversos estados do Brasil, já atentaram contra própria vida depois de terem sua privacidade exposta nas redes sociais. Fato este que inclusive já provocou incontáveis suicídios por parte das vítimas que, culpadas, literalmente enlouqueceram a ponto de se matarem.
Ao contrário do que pensa muita gente, a internet não é um mundo livre de regras jurídicas, onde as pessoas podem fazer o que desejam, sem enfrentarem as consequências de seus atos.
Os crimes contra a honra são provavelmente os mais frequentes na internet. Com o uso crescente das redes sociais e alguma falta de maturidade ou de serenidade no uso delas, frequentemente pessoas se excedem em seus comentários e terminam por atingir a reputação alheia. Nesses casos, os autores da ofensa estarão sujeitos tanto às consequências criminais (ou seja, ao cumprimento de pena) quanto civis (o pagamento de indenização à vítima) de seu ato.
Como mencionado acima, a responsabilidade civil é relativamente independente da responsabilidade penal. Divulgar ou compartilhar fotos e vídeos não autorizados pode gerar punições penais. A vítima pode processar, assim, penal e civilmente, quem colaborar com a propagação de fotos e ou vídeos.
Em princípio, qualquer ato ilegal praticado por alguém na internet pode gerar consequências jurídicas. De forma geral, a responsabilidade por atos na internet é idêntica àquela causada por atos no mundo físico, isto é, no mundo não virtual. Não há norma jurídica que dê isenção às pessoas para praticarem atos ilegais na internet.
AT – Qual deve ser o procedimento de quem é vítima deste tipo de atitude?
Katia – É necessária uma mudança de mentalidade, inclusive na hora de reagir ao problema. As vítimas não devem se abater e sim virar o jogo, porque o criminoso cresce na medida em que a vítima se oprime. Elas devem ter a consciência de que foram alvos de um crime e denunciar quem divulgou as fotos.
A comunicação do crime ou contravenção à polícia pode realizar-se pelo registro de boletim de ocorrência (BO), que pode ser feito verbalmente pelo ofendido ou por outra pessoa, em uma delegacia de polícia. Também se pode levar o conhecimento de uma infração penal à polícia ou ao Ministério Público por meio de comunicação escrita chamada de notícia-crime.
Toda ação judicial precisa de provas para gerar a condenação. Assim, é sempre muito importante que a vítima, os parentes da vítima ou a pessoa que tiver tido conhecimento do fato entregue à polícia ou ao Ministério Público a maior quantidade possível de provas e informações, para permitir que a investigação seja rápida e eficiente.
No caso de ato ilícito cometido pela internet, às vezes a prova é fácil, pois é possível gravar o texto, imagem, vídeo ou som que represente o ato. Isso pode ser feito diretamente pelo ofendido, por meio da gravação da imagem da tela do computador (pelo comando Print Screen ou equivalente), pela gravação do e-mail, pela impressão em papel (hardcopy) ou em formato PDF dos arquivos ou por qualquer outra forma. A gravação dos dados pode ser feita pela vítima ou por outra pessoa que tenha tomado conhecimento do fato.
AT – A Lei Carolina Dieckmann se aplica a este caso?
Katia – A Lei 12.737/12, que se tornou conhecida como a lei Carolina Dieckmann, criminaliza a invasão de computadores para obter vantagem ilícita, como a falsificação de cartões de crédito e a interrupção de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública.
Porém, a proposta não prevê especificamente a conduta criminosa de divulgar e compartilhar fotos e vídeos na internet. Ao contrário do que muitos pensam, essa lei pode até ser aplicada aos casos envolvendo aspectos sexuais, mas não foi elaborada especificamente para isso. O bem jurídico tutelado nela é outro, e de maneira difusa. A Lei 12.737/12 criminaliza a invasão de computadores para obter vantagem ilícita.
Entretanto, estão tramitando projetos de lei específicos em relação à privacidade sexual, os quais tratam especificamente da divulgação de fotos e vídeos na internet, mas os mesmos ainda não foram aprovados pela Câmara.
AT – Em relação ao preconceito e a culpabilização da vítima, o machismo, há alguma lei que ampare as vítimas deste preconceito?
Katia – O caso no qual duas jovens de Encantado tiveram fotos e vídeos íntimos divulgados nas redes sociais, escancara um comportamento da cultura machista que é o de culpabilizar as vítimas. São lamentáveis os textos e comentários grotescos que circulam pela internet, principalmente, porque são feitos por homens, mulheres, até mesmo por pessoas que se dizem estudadas, e que, a princípio, deveriam ter um entendimento mais amplo sobre as coisas.
Vivemos uma realidade nas relações onde, o afeto saudável encontra-se cada vez mais difícil. O sentimento de posse ocupa-se dessas relações e a agressividade tem se tornado comum. O problema é mais sério do que podemos mensurar. Sim, porque muitas vítimas se calam e não conseguem procurar ajuda, por acharem normal a violência contra si.
Qualquer pessoa poderia passar por uma situação dessas. Muitas dirão: “Ah, mas não me deixo filmar fazendo sexo”. Parabéns. Você pode ser filmado sem saber ou, talvez, ser filmado em qualquer outra situação que não seja na cama e acabar também se tornando vítima de uma situação de humilhação. Não é engraçado ser exposto publicamente. Não se deixe enganar, todos somos suscetíveis a passar por isso. A hipocrisia não tem preconceitos, é democrática e pode atingir qualquer um.
A violência contra a mulher não acontece num vácuo. Ela é possibilitada por todo um contexto de piadas machistas, de objetificação feminina, de controle do corpo da mulher. O machismo ainda alimenta a condenação das vítimas, especialmente mulheres. Existe sempre aquela parcela da sociedade que considera que a vítima, ao se expor, deve ter provocado isto, estaria vestida inadequadamente, bebeu demais, etc, etc. O que, evidentemente, só uma sociedade muito machista, como a nossa, poderia pensar.
Entretanto, a lei existe e está posta! O que cabe a nós é lutarmos para que ela de fato seja efetiva e que realmente puna os agressores. Mas só isso não basta. Temos que fazer um exercício diário de desconstrução do machismo. De lutar pelos nossos direitos de ir e vir, e de fazermos o que quisermos e se quisermos. Uma luta que deve ser de todos nós.
Somos todos humanos, passíveis de erros. Então, que saibamos ter empatia pela dor do outro, especialmente se for uma dor que nunca experimentamos. Deixo aqui registrado, toda minha solidariedade e sentimento para com as famílias das vítimas.
Pelo fim do machismo
O Coletivo de Mulheres de Encantado e Vale do Taquari surgiu há cerca de três semanas, depois da viralização de fotos e vídeos íntimos de mulheres da região. Caroline, que integra o Coletivo, diz que em função disso surgiram declarações de alguns formadores de opinião de Encantado que disseminaram a ideia de que as meninas foram as grandes culpadas por terem suas vidas íntimas expostas publicamente. “Esses também sugeriram que as mesmas deveriam apanhar, como ‘corretivo moral’. Não pensamos dessa forma, acreditamos que os homens que quebraram a confiança dessa relação são os verdadeiros culpados. Se essas imagens/vídeos foram feitos em meio à confiança de ambos os envolvidos, a mesma deveria ter sido mantida. Nós acreditamos que a mulher, assim como qualquer ser humano, deve obter controle sobre seu corpo”.
O Coletivo ainda afirma que, embora uma de suas pautas seja a luta pela responsabilização dos culpados e conforto às vítimas, também há o objetivo de dar empoderamento às mulheres da cidade e da região. Ele busca discutir, refletir e combater o machismo que reprime diariamente as mulheres e que passa despercebido na maioria das vezes.
O grupo não possui uma líder. Preza pela horizontalidade, na qual as opiniões de todas têm igual importância e todas as mulheres que fazem parte estão informadas de tudo o que é feito em nome do Coletivo. Em relação à repercussão que o fato teve na mídia, o Coletivo de Mulheres se diz surpreso e feliz, pois acredita que ignorar os fatos não fará o problema sumir. “É preciso que encaremos essas coisas de frente, trazendo-as para o público geral e gerando discussões construtivas. A informação e o debate são fundamentais para que nosso objetivo seja alcançado. Assim, avaliamos como muito positiva essa repercussão toda, ainda mais o envolvimento da Comissão de Direitos Humanos, pois significa que o Poder Público agora vê o que acontece”.