Autran Dourado é o autor de um livro com o título “O risco do bordado”. Ali se conta a história de João da Fonseca Nogueira, uma história que vai aparecendo aos poucos a partir da visita que o homem faz à cidadezinha onde passou a infância. Os encontros que mantem são pedaços de tempo que vão compondo o enredo ponto por ponto – como se fosse um bordado.
O traçado completo só pode ser visto no fim. Até lá, o risco do bordado domina. Ou seja, a palavra “risco” com os seus dois sentidos. Risco como o trajeto e risco como aquilo que foge ao controle.
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Bordados faziam parte das chamadas “prendas domésticas” que se ensinavam às moças tempos atrás. As boas moças passavam horas com agulha e linha na mão seguindo o risco previamente marcado no pano.
Delas não se esperava muita imaginação. O bom era ater-se ao desenho traçado. As cores tampouco dependiam de decisão pessoal. Ou imitavam os tons presentes na natureza ou se empregava uma única cor. Aliás, o bordado monocromático era coisa elegante. Podia ser terrivelmente entediante usar a mesma cor todo o tempo, mas era podre de chique.
Ensinava-se aplicar igual dose de capricho de um lado e de outro do pano. Bordado bem feito quase não distinguia o avesso do lado direito. Não se recomendava fazer nó com a linha, fosse para iniciar ou fosse para dar o arremate. Ninguém devia notar onde era o fim e onde era o começo. Cabia disfarçar as mudanças, passando a linha por baixo dos pontos.
De outra parte, abandonar um bordado era quase um delito. Depois de dar a largada, esperava-se que fosse levado até o fim. Custasse o que custasse.
Bordar era um tipo de ensaio para aceitar o destino. Ninguém bordava para aprender sobre o outro tipo de risco. Arriscar-se não estava nos planos.
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O bordado voltou hoje em dia.
Todavia, ao colocar lado a lado o antigo e o novo bordado a diferença é gritante.
O bordado hoje em dia ficou parecido com uma aventura. De uma noção meio vaga do risco, os bordadores agora se arriscam. Misturam as cores, misturam os pontos, acrescentam desenhos que não estavam no script. Não é raro que amigos bordem em grupo. A experiência é engraçada. Um borda uma parte ao seu gosto; outro continua no rumo traçado ou muda a paisagem, o ponto e a cor. A diferença é acolhida e fica somada ao trabalho. Como se vê, o risco gravado no pano diminuiu de importância; o outro, aquele que acolhe o imprevisto, este ganha terreno.
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Nesta altura do terceiro milênio parece legal comparar o bordado e a vida, do jeito como o livro de Autran Dourado propôs. Tal um bordado no pano, a vida mistura destino e incerteza. A gente pode seguir duro no trilho ou deixar a vida levar – como Zeca Pagodinho cantou.