Do carro avisto a enorme máquina colhendo soja. Diminuo a marcha. Estaciono para ver melhor. A primeira impressão é de que há um bichão de metal operando sozinho. Mas não. Tanto quanto sei, as colheitadeiras não operam por controle remoto. O condutor deve estar meio oculto pelos vidros escurecidos. Provavelmente, sentado numa poltrona macia, talvez ouvindo música e com o ar condicionado ligado. Provavelmente. Mais adiante, junto ao caminhão que espera a carga, dois rapazes de bermuda e camiseta bonita, conversam e olham qualquer coisa no celular.
Pelo tamanho da faixa cortada, avalio que o campo estará limpo em pouco tempo.
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A visão tem o poder de evocar lembranças antigas. Na propriedade dos meus avós, uma colheita tinha componentes muito distintos. Lembro de colheitas de feijão. Esse era um dia movimentado e alegre – pelo menos para as crianças.
A tarefa de colher envolvia toda a família e talvez mais alguns peões, pagos pelo dia de trabalho. O pagamento incluía o direito ao almoço na mesa da sala de jantar. Aliás, quem pensaria em botar os peões a comer em outro lugar que não fosse na mesa com os demais, se exatamente eram eles que vinham ali aliviar a canseira e fazer o trabalho render? O trabalho fazia todos iguais.
Para a lida, o pessoal vestia roupas grosseiras, geralmente com muitos remendos – a roupa também tinha de render. Fosse qual fosse o calor, usavam-se mangas compridas. As mulheres que na época só trajavam vestidos, acrescentavam perneiras na faina da roça. As perneiras faziam as vezes de calças que cobriam do pé ao joelho. Com elas, as mulheres encaravam a colheita no duro.
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Colher significava cortar o pé do feijão já maduro, colocar na carroça de bois e levar para mais perto de casa. A carroça fazia repetidas viagens. O condutor da carroça tinha de se ver com os bois. Gritava com eles, chamava cada um pelo nome, batia com a açoiteira, quando julgava importante – a gente dizia “suitera”, para esse tipo de chicote feito de tiras de couro. Os bois atendiam a “suitera” e se moviam vagarosos pelos trilhos precários.
Os pés de feijão cortados eram colocados sobre um grande pano estendido no chão – o pano da eira. Ali o feijão secava bem espalhado, até a hora de o manguá entrar em ação. O manguá era um utensílio agrícola. Consistia numa vara de madeira com uma coreia de couro amarrada na ponta. O trabalhador empunhava o manguá e batia no feijão para soltá-lo da vagem. Era um trabalho duríssimo. Pedia a resistência de um remador de olimpíada.
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Eu sou analfabeta em manguá; jamais conduzi carro de bois. No máximo, ajudei a espalhar e, depois, a recolher os grãos de feijão. O que de fato consigo é trazer à memória imagens de eira e manguá. Boto as imagens antigas ao lado da cena que agora contemplo na estrada.
O tempo passou – resmungo com os meus botões.